Há algum tempo o Diário de S. Paulo me encomendou o seguinte artigo:
As notáveis “experiências” de Flávio de Carvalho e sobre ele
Renato Pompeu (especial para o Diário)
O arquiteto, engenheiro civil, pintor, escultor, desenhista, cenógrafo de balé, cronista e estilista de moda Flávio Resende de Carvalho (1899-1973), fluminense radicado em São Paulo, se notabilizou não só por seus múltiplos talentos profissionais e artísticos, como também por suas “experiências”, como andar ao contrário dos fiéis numa procissão de Corpus-Christi, ainda por cima de boné, o que despertou perplexidade e até revolta, na São Paulo muito mais católica de 1931 do que é hoje. Ou, para fazer propaganda de uma “moda masculina para um país tropical”, desfilar de saiote e blusa transparentes criadas por ele mesmo pelo viaduto do Chá, como fez em 1956. Também, quando sua mãe agonizava, em 1947, ele a usou como modelo para uma série de pinturas.
Mas, para quem acha que isso já é demais, ele falava de uma outra “experiência” tão terrível que nunca ousou descrevê-la, levando o segredo para o túmulo. Mal sabia que, seis anos depois de sua morte, estudantes de arquitetura que mais tarde se tornariam famosos, como o jornalista Marcelo Tas e o cineasta Fernando Meirelles, ousariam desafiar o regime militar, em 1979, para resgatar a escultura em que Flávio de Carvalho homenageou o poeta espanhol García Lorca, assassinado durante a Guerra Civil dos anos 1930 por militares franquistas.
A escultura, na praça das Guianas, nos Jardins, tinha a forma da foice e martelo, símbolo do comunismo, e havia sido depredada por militantes do Comando de Caça aos Comunistas, em 1969. E em seguida foi recolhida a um depósito da Prefeitura, de onde foi retirada dez anos depois por Tas, Meirelles e os demais, estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que a deixaram no vão livre do Masp. Restaurada, a escultura voltou para seu lugar original.. Se as outras “experiências” foram “de” Flávio de Carvalho, esta foi “sobre” ele.
Nascido em Amparo da Barra Mansa, RJ, e tendo vindo com a família para São Paulo com um ano de idade, Flávio de Carvalho era de formação européia. De 1911 a 1922, dos 12 aos 23 anos, fez o secundário na França e cursos universitários na Inglaterra, onde se formou em Engenharia Civil (que naquela época englobava arquitetura) e em Belas-Artes. Voltando ao Brasil, radicou-se na febril São Paulo de então, centro do modernismo nas artes no Brasil. Nos anos 1920, trabalhou numa construtora, entre outras obras, no Mercado Municipal e no Palácio da Justiça; ainda hoje existentes, mas nos anos 1930 passou a executar os seus próprios projetos arquitetônicos, num estilo que foi qualificado de “revolucionário romântico” pelo principal arquiteto modernista do mundo, Le Corbusier.
Era um estilo muito pessoal, que se manifestou também em suas pinturas e esculturas – e até em textos para o teatro, como, em 1933, O Bailado do Deus Morto, cuja encenação foi proibida pela Polícia. Esses textos o levaram a ser indicado em 1939 para o Prêmio Nobel de Literatura, pelo professor de História da Faculdade de Filosofia, Paul Shaw. Flávio de Carvalho representou o Brasil na Bienal de Veneza de 1950 e teve sala especial na Bienal de São Paulo de 1971. Morreu a 4 de junho de 1973, poucos dias antes da encenação de seu trabalho O Bailado do Deus Morto, que foi cancelada.
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