Faz algum tempo a seguinte resenha foi publicada pelo Diário do Comércio, de São Paulo:
A saga do detetive Lew
Archer, de Ross Macdonald
Renato Pompeu
Os fãs em geral de literatura policial mista de ação e psicologia e em particular do detetive californiano Lew Archer, criação do escritor Ross Macdonald, pseudônimo literário do americano criado no Canadá Kenneth Millar (1911-1983), vão achar precioso o volume “Os arquivos de Archer”, recém-publicado no Brasil pela Novo Século, que reúne contos publicados em vida de Macdonald e inéditos achados depois de sua morte. Archer se transformou em Lew Harper no filme “Harper”, com Paul Newman, pois o ator achava que nomes começados com a letra H davam sorte, e foi Lew Millar em uma série de televisão, além de propriamente Lew Archer em outras séries.
O nome Lew Archer é uma dupla homenagem a escritores que Macdonald apreciava: o Lew vem de Lew Wallace, criador do célebre personagem corredor de biga no antigo Império Romano, Ben-Hur. E o Archer lembra Miles Archer, sócio do detetive particular Sam Spade, este o principal personagem do famoso romance “O falcão maltês”, do escritor Dashiell Hammett.
Como o próprio Macdonald, Archer é rebento de uma família californiana disfuncional, desfeita pelo abandono do pai e marido. No caso do detetive, isso o transforma num adolescente perturbado, que se torna um pequeno delinquente, mas é regenerado pela influência de um policial veterano. O próprio Archer se torna policial, em Long Beach, na Califórnia, mas se revolta com tanta corrupção que testemunha entre seus colegas e acaba sendo demitido. Na Segunda Guerra Mundial, serve como agente de contraespionagem do Exército dos Estados Unidos.
Tornado detetive particular, Archer atua nos chamados subúrbios em expansão então, nos anos 1950, no Sul da Califórnia, equivalentes aos chamados condomínios no Brasil, ou a bairros como Alphaville. Em termos de ficção policial, o criador Ross Macdonald e a criatura Lew Archer se inserem na longa transição efetuada a partir da primeira tradição do gênero, baseada no raciocínio lógico, dedutivo e indutivo, em que cérebros geniais como Sherlock Holmes, de Conan Doyle, e Hercule Poirot e Miss Marple, de Agatha Christie, deslindam tramas a partir de pistas, a tradição de textos literários policiais intelectualizados tipicamente ingleses, para a segunda tradição do gênero.
Nesta segunda tradição, com o gênero policial tornado tipicamente americano, o essencial são as ações físicas dos detetives durante suas investigações, particularmente procurando indivíduos desaparecidos ou objetos preciosos sumidos, muitas vezes envolvidos em lutas corporais violentas e em tiroteios. Tudo isso, porém, é finamente temperado por análises psicológicas mais ou menos profundas. Essa tradição foi iniciada por Dashiell Hammett e desenvolvida pelo famoso autor Raymond Chandler, em especial em seu personagem Philip Marlowe, que foi a primeira inspiração de Ross Macdonald.
Mas Lew Archer representa o ponto culminante dessa segunda corrente da literatura policial. Particularmente ele se caracteriza por se envolver em problemas das famílias que o procuram, normalmente para tentar localizar um filho ou uma filha que desapareceu e que talvez tenha morrido , possivelmente por assassínio. Archer muitas vezes descobre segredos de família que a grande maioria dos seus membros sequer sabia que existiam. Como o próprio Archer, e como o próprio autor Macdonald, muitas vezes ele se depara, entre seus clientes, com famílias desajustadas pelo abandono de um cônjuge.
Depois de Lew Archer, a literatura policial americana passaria dessa fase “realista e psicológica", para uma fase “naturalista e brutal”, que se especializaria em descrição nua e crua de cenas sanguinolentas ou de cadáveres muito machucados, como nos livros de Michaell Spillane. Em seguida viria a fase atual, mais visível nas séries de televisão, em que os antigos detetives particulares são substituídos pelas forças regulares da polícia, dando-se ênfase ao desenvolvimento tecnológico de seus laboratórios científicos e periciais tão avançados, e aos conflitos emocionais de investigadores, vítimas, assassinos e pessoas em volta.
Assim, se há pessoas nostálgicas da antiga fase intelectualizada da literatura policial, em que o principal é o raciocínio, há também pessoas que sentem saudades de detetives como Lew Archer, um homem de olhos azuis, triste, beberrão, sempre com saudades de sua ex-mulher Sue, e que bate perna em busca de pistas e de pessoas desaparecidas, que se envolve com os dramas sentimentais e familiares de seus clientes e do círculo de pessoas que os rodeia. Para esses leitores, “Os arquivos de Archer” são um prato cheio.
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