15 de novembro de 2010

O centenário de Adoniran

Por ocasião do centenário de Adoniran Barbosa, o Diário do Comércio de São Paulo publicou o seguinte artigo:

Adoniran e a alma paulistana


Consta que, no fim da vida, Adoniran se queixou de que a São Paulo que ele imortalizou em seus sambas só existiu até os anos 1960, tendo o Brás e o Bexiga, por exemplo, ficado irreconhecíveis e a Praça da Sé se transformado num aglomerado de carros e de concreto. Mas as cidades, como dizia o grande escritor Guimarães Rosa das pessoas, não morrem, ficam encantadas. E encantada está a São Paulo que todos nós conhecemos, nas músicas que também todos nós conhecemos desse filho de italianos que é um ícone da paulistanidade. Apenas dois anos depois de sua chegada ao Centro Histórico de São Paulo em 1933, vindo da Valinhos natal via Jundiaí, com passagem pelo então bairro de Osasco, ele celebrou a avenida São João, que durante décadas foi o foco do Carnaval da cidade, em 1935, na letra de “Dona Boa”, em parceria com J. Aimberê. “Dona boa/ Dona boa/ Dona boa vem pro cordão/ E não fique assim à toa// Quando você aparece/ Na avenida São joão/ Até o sol enlouquece/ Se esquece da obrigação”. A avenida mudou muito, de reduto da boemia e do Carnaval passou para reduto de imigrantes africanos que falam português com sotaque luso, mas mantém o Bar Brahma, por exemplo, onde Adoniran tinha mesa cativa durante suas últimas décadas.

A alma da avenida São João, no entanto, se mantém muito viva na letra que Adoniran fez para “Iracema”, de 1956: “Iracema, fartava vinte dias pra o nosso casamento/ Que nóis ia se casar/ Você atravessou a São João/ Veio um carro, te pega e te pincha no chão/ Você foi para/ a Assistência, Iracema/ O chofer não teve curpa, Iracema/ Paciência, Iracema, paciência”. Em “Saudasa maloca”, de 1951, não são citados nomes de lugares, mas é possível reconhecer um casarão do Bexiga na “casa véia, um palacete assobradado” transformada em maloca e depois substituída por “um prédio arto”, e a Praça da República “nas grama do jardim”, onde “hoje nóis pega palha”, ou seja, dormimos. Dois anos depois, em 1953, Adoniran celebrou o Brás, o famoso bairro da Zona Leste, no “Samba do Arnesto”, com o breque “ele mora no Brás”, que, como em muitos bons sambas tipicamente paulistanos interrompe a linha melódica anunciada por “O Arnesto nos convidou/ prum samba”.

Em “No Morro da Casa Verde”, de 1959, o bairro de nome poético da Zona Norte é imortalizado: “Silêncio, é madrugada./ No morro da Casa Verde/ A raça dorme em paz./ E lá embaixo/ Meus colegas de maloca/ Quando começa a sambá não para mais/ Silêncio! Valdir, vai buscar o tambor/ Laércio, traz o agogô/ Que o samba na Casa Verde enfezou!/ Silêncio!”.

Todos, não só em São Paulo, mas em todo o Brasil, ouviram falar do bairro do Jaçanã, também da Zona Norte, e do extinto trenzinho da Cantareira, celebrados em “Trem das Onze”, de 1964. Mas, no mesmo ano, Adoniran celebrou outro ícone da paulistanidade, a onipresente Light, hoje substituída pela Eletropaulo: “Lá no morro quando a luz da Light pífa/ A gente apela pra vela, que alumeia também/ (quando tem)”. Também típico de São Paulo é o hábito de cantar samba em italiano, como no “Samba Italiano”, de 1965, que celebra outra onipresença na cidade, a chuva: “Piove, piove,/ Fa tempo que piove qua, Gigi,/ E io, sempre io,/ Sotto la tua finestra/ E vuoi senza mi sentire/ Ridere, ridere, ridere/ Di questo infelice qui”.

Sempre preocupado com o Carnaval, Adoniran celebrou em “Vila Esperança”, de 1968, o bairro do mesmo nome, um dos poucos redutos que mantiveram o Carnaval de rua em São Paulo: “Vila Esperança, foi lá que eu passei/ O meu primeiro Carnava/ Vila Esperança, foi lá que eu conheci/ Maria Rosa, meu primeiro amor// Como fui feliz, naquele fevereiro/ Pois tudo para mim era primeiro/ Primeira rosa, primeira esperança/ Primeiro Carnaval, primeiro amor criança”

Nem todas as novidades na cidade eram malvistas por Adoniran. Quando o viaduto Santa Ifigênia perdeu a sua cor negra metálica original, e foi pintado de ocre, em “Viaduto Santa Ifigênia” ele cantou: “Venha ver/ Venha ver Eugênia/ Como ficou bonito/ O viaduto Santa Ifigênia/ Venha ver// Foi aqui,/ Que você nasceu/ Foi aqui, /Que você cresceu/ Foi aqui que você conheceu/ O seu primeiro amor”. Ele ainda cantaria o metrô, em “Uma Simples Margarida”, em que tenta seduzir uma mulher apresentando-se como engenheiro do metrô. Mas nunca abandonou o tema da avenida São João e suas imediações, como em “Rua dos Gusmões”. São Paulo é a cidade da garoa, é a cidade que mais cresce no mundo, é a cidade que não pode parar – e é a cidade de Adoniran Barbosa.

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