22 de fevereiro de 2010

Best-seller e grande arte: Os inomináveis

O Diário do Comércio, de São Paulo, me encomendou há tempo a seguinte resenha:

Um romance popular com técnica de grande arte

Este romance Os inomináveis, do suíço Hansjörg Schertenleib, foi considerado em seu país e na Alemanha uma obra de grande arte, tanto que ganhou os prêmios de Melhor Livro das cidades de Zurique e de Berna, e ainda o prestigioso Prêmio da Fundação Schiller, tendo sido filmado pela TV alemã. Agora, foi lançado no Brasil pela Grua, com apoio da Fundação Pró-Helvetia, empenhada na difusão da cultura da Suíça. Mas é na verdade uma obra de cunho popular, sobre uma seita de fanáticos que quer matar o papa João Paulo 2.o. Está assim bem dentro da recente corrente de best-sellers que têm como tema o misticismo religioso no mundo ultratecnologizado de hoje e que ainda confundem personagens fictícios com personagens reais, querendo criar no leitor a impressão de que está apresentando o relato de uma história realmente acontecida.
Afinal, a grande arte tem como tema a condição humana universal e eterna, particularizada, com emoção discreta, nas dimensões nacionais e de momento – e tem, como característica imprescindível, a de transcender o momento e as condições em que foi criada e perdurar durante séculos. Ora, o livro de Schertenleib, ao que tudo indica, será muito pouco lido, digamos, daqui a meio século. Está irremediavelmente preso à situação contemporânea, em que todas as utopias foram para o brejo, com exceção das milenares utopias religiosas, adaptadas porém aos novos tempos, em que as pessoas tendem a perder o senso comunitário e a adotar ou concepções estritamente individualistas, ou a se inserir em pequenos grupos.
Mas acontece que Schertenleib escreve com todas as técnicas da grande arte em que foi treinado em academias suíças de belas-artes pelas quais passou. Ele escreve com o auxílio luxuoso de uma prosa requintada, na descrição de ações e de paisagens mais rurais que urbanas, na percepção íntima da psicologia de seus personagens. Sentimos na pele quando brilha o sol em suas descrições, ou sentimos perpassarem por nossos corpos as sombras das folhagens e galharias dos bosques na Irlanda e na França.
Fruímos as delicadas insinuações de um erotismo transgressor, dignas da pena dos melhores grandes mestres da literatura universal; nos horrorizamos com as cenas de violência, descritas com discrição e sutileza. O autor detém todas as propriedades de escritor de grande arte, com sua técnica apurada e com sua sensibilidade aguçada, mas quis ser lido nesta época de mercado editorial conturbado, em que a qualidade permanente da grande arte interessa menos do que a legibilidade momentânea, a adequação aos gostos predominantes no momento.
Assim, mesmo sendo simplesmente mais um candidato a best-seller (o que em si não é ilegítimo; atender aos gostos da maioria, afinal, tem um sentido eminentemente democrático – o que acontece é que os gostos da maioria são mutáveis por excelência e as obras que se impõem rapidamente também desaparecem rapidamente), Os inomináveis é um romance de alta qualidade técnica.
No entanto, a alta qualidade técnica, se pode criar obras de grande interesse num determinado momento da vida social, não basta para criar grande arte. Mas é suficiente para criar, como o livro de Schertenleib, um livro que merece leitura atenta e agradável. E que cumpre algumas das funções da grande arte, como a purgação de nossos pecados, por meio da vivência emocional dos pecados da seita que é o verdadeiro personagem central do livro.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.

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