14 de junho de 2013

O outro lado do milagre chinês

Resenha para a revista Retrato do Brasil - As maiores migrações da história da humanidade, na China contemporânea - Renato Pompeu - “Areia dispersa”, assim são conhecidos na China os 200 milhões de camponeses desorganizados que, a cada ano, deixam o seu município em busca de melhores condições de vida, o que na esmagadora maioria dos casos não conseguem. Literalmente escorraçados de seus lares e terras de cultivo por causa da estagnação da economia, ou de ações malévolas de autoridades corruptas, que abrem caminho para outorgar terras a grandes empresas, alguns dos mais afortunados conseguem emprego em minas subterrâneas, onde fazem trabalhos extenuantes por menos de um real por dia; outros, na Província de Henan, vendem seu sangue até três vezes por dia para clínicas, hospitais e bancos de sangue. A grande maioria se amontoa em barracos miseráveis na periferia das grandes cidades, fora das vistas da população urbana que está inserida no dinamismo estonteante do chamado milagre econômico chinês. Dos que trabalham nas minas, 3 mil morrem por ano em deslizamentos e soterramentos, a única ocasião em que a grande mídia se dá conta de sua existência. Deles, 130 milhões mudam não somente de município, mas deixam também sua província natal, e centenas de milhares saíram do país, dos quais 55 mil moram, por exemplo, em Moscou, igualmente em barracos miseráveis. A saga dessas migrações em massa, as maiores da história da espécie humana, é relatada no livro “Scattered Sand – The History of China’s Rural Migrants” (“Areia dispersa – a história dos migrantes rurais da China”), lançado em inglês, em agosto último, em Londres e Nova York, pela Verso. A autora, Hsiao-Hung Pai, é uma jornalista nascida em Taiwan em 1968, mas que se radicou na Grã-Bretanha desde 1991. Como ela descende de uma família que fugiu da China Comunista, talvez se pudesse alegar que seu livro é produto de um reacionarismo ressentido. No entanto, o livro foi editado pela Verso, uma editora que publica somente livros de autores esquerdistas, na quase totalidade marxistas. Essa jornalista colabora no jornal progressista inglês “The Guardian”, uma voz dissonante do coro dos contentes do pensamento único neoliberal. Ela é autora de um livro anterior, que resultou no filme “Fantasmas”, de 2006, disponível nas locadoras brasileiras e que relata a vida dos “trabalhadores fantasmas”, isto é, sem registro, nem contrato. Esses 200 milhões de migrantes constituem um terço da população economicamente ativa da China, mas ganham no máximo metade do salário mais baixo entre os trabalhadores regularmente registrados no país. Não têm acesso à saúde pública, ou a qualquer tipo de sistema de saúde, e também seus filhos não têm nenhum acesso à educação. As mineradoras, indústrias e construtoras em que trabalham não os contratam formalmente, não garantem nada em termos de condições de segurança do trabalho, e muitas vezes, a certa altura, deixam de pagar os próprios salários desses trabalhadores não-registrados. Não apenas o confisco de suas terras para serem outorgadas a grandes empresas os leva a abandonar seus municípios, mesmo suas províncias e até o seu país. Um dos grandes problemas é a inexistência de saúde pública no campo. Para pagar os caros serviços médicos privados prestados a eles ou a seus parentes, os camponeses têm de migrar em busca de trabalhos que lhes rendam mais dinheiro do que nos precários serviços que podem encontrar nas suas aldeias originais. Nas cidades, não são considerados cidadãos, pois apenas gozam da cidadania os que contam com registro de residência urbana. Os camponeses, mesmo migrados para as cidades, continuam tendo registro de residência rural, que não garante tantos direitos quanto o registro de residência urbana. Talvez um dos lados piores da situação desses migrantes é que eles não contam com nenhuma simpatia das autoridades ou das classes médias urbanas, que os encaram como gente ignorante e incompetente, incapaz de garantir a sua própria sobrevivência, e que enfeia a paisagem das cidades – isso nos raros casos em que as autoridades ou as pessoas das classes médias tomam conhecimento de sua existência.

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