13 de junho de 2013

Os livros que Marx lia

Resenha encomendada pela revista Retrato do Brasil - As leituras de Karl Marx - Renato Pompeu - Poucos anos antes de 1840, o mundo perdeu um pouco original e pouco inspirado poeta romântico, para ganhar em pouco tempo um grande jornalista e, a médio prazo, aquele que grande parte dos especialistas considera o maior pensador que a humanidade jamais produziu. Esse mau poeta, esse grande jornalista e esse insigne pensador eram uma pessoa só: Karl Heinrich Marx (1818-1883), filho de um culto judeu alemão adepto do Iluminismo; seu pai era um dos poucos de sua linhagem e sobrenome que não foi rabino, pois se converteu ao luteranismo para poder trabalhar como advogado.. Graças a Napoleão, os judeus da Renânia tinham sido equiparados aos demais cidadãos, mas quando a Prússia retomou a região os judeus renanos, para continuarem emancipados, tiveram de abandonar sua religião, o que o pai fez imediatamente. O menino Karl, porém, só se converteu ao luteranismo aos seis anos de idade, quando seus avós maternos já tinham morrido e sua mãe consentiu afinal em converter-se ao luteranismo. O menino cresceu com uma dúvida na cabeça – afinal não se passa impunemente, em tão tenra idade, de uma ortodoxia para outra – e com muitos livros na mão, a ele proporcionados pelo pai erudito e por um vizinho da idade de seu pai, um barão de antiga estirpe alemã que mais tarde se tornaria seu sogro. O pai o introduziu à leitura dos iluministas franceses e dos poetas e romancistas clássicos alemães. O vizinho nobre o iniciou nas leituras de clássicos gregos e latinos e, principalmente, de Shakespeare, do qual sabia de cor peças inteiras. O menino pegou o gosto pela leitura, e se tornou seguramente o ser humano que mais leu em toda a história. É isso que se depreende da leitura do livro “Karl Marx and World Literature”, do erudito alemão S.S. Prawer (nascido em 1925), que, fugindo ao nazismo, se radicou desde os anos 1930 na Inglaterra, relançado este ano pela editora Verso em Londres e Nova York (o original é de 1976). Note-se que “literatura mundial” foi um conceito, oriundo de Goethe, introduzido por Marx no “Manifesto Comunista”, quando menciona que, em paralelo à mundialização da economia, “das antigas literaturas nacionais surge uma literatura mundial”. E se note também que Prawer se está referindo mais diretamente ao que se chama de literatura criativa ou beletrística, ou seja, a poemas, romances, contos e peças. Se bem que ele cita também obras científicas e filosóficas, o livro se preocupa mais com a maneira pela qual a alta literatura, e até a literatura mais popular, influenciaram Marx e suas descobertas. Um adversário político como o anarquista russo Bakunin reconheceu que “poucos homens leram tanto, e, pode ser acrescentado, leram tão inteligentemente quanto o sr. Marx”. E Prawer é considerado pelos especialistas no assunto, em toda a Europa Ocidental, simplesmente o homem que mais estudou os livros lidos e citados por Marx, dos quais menciona em seu livro perto de 800 autores. Influenciado pela leitura intensa, constante e meticulosa de literatura criativa, até os 19 anos, Marx pretendia ser poeta e escreveu versos como os seguintes: Talvez penses, poeta, que não posso alcançar A batalha em tua alma, a luz dentro de teu peito, As imagens que aspiram a se elevar? Elas brilham, puras como o reino das estrelas; Flamejam, como um dilúvio ardente, Apontam para uma vida mais elevada Em suma, como nota Prawer, nada original em relação ao romantismo alemão da época, mas de qualquer modo os poemas desta fase de Marx respiram intensas leituras de grandes autores alemães, como Schiller, Goethe, e de uma multidão de poetas menores que usavam as mesmas imagens para os mesmos temas; os poemas de Marx evidenciam ainda uma bagagem crítica enriquecida por leituras de Hegel e outros grandes e pequenos conhecedores de estética. Marx, no entanto, se media pelos padrões do dramaturgo grego Ésquilo – de que admirou particularmente as peças sobre o herói Prometeu – e de Goethe; viu aos 19 anos que jamais chegaria a essas alturas como poeta e saiu em busca, como dizem os ingleses, de pastagens mais verdes. Inspirou-se nas leituras dos grandes romances ingleses do século 18, como “A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy, Gentilhomem”, de Laurence Sterne – um dos modelos de nosso Machado de Assis nas suas melhores obras - e começou a escrever ficção em prosa – como, porém, seu padrão era o “Dom Quixote”, e Marx não chegou nem perto disso, desistiu do romance e tentou o teatro, novamente sem êxito. A essa altura, embora continuasse lendo até o fim da vida poesia, ficção e teatro, e usando essas leituras em seus textos, ele tentou a filosofia, que, a par de história e direito, era afinal o que ele estudava na universidade, em Bonn e em Berlim. Foi conquistado pelos filósofos realistas gregos antigos Demócrito e Epicuro, sobre os quais escreveu sua tese de doutorado e que julgavam que os deuses, se existiam, não se ocupavam dos destinos dos seres humanos, destinos que eram frutos de escolhas e decisões dos próprios seres humanos. Além disso, os fenômenos da natureza, para Demócrito e Epicuro, se explicavam também por razões meramente naturais e não implicavam intervenções divinas para se efetuarem e também para serem entendidos. Aqui há um ponto particularmente significativo. Marx ficou seduzido pela maneira simples e clara com que Epicuro se ocupou do problema da morte, tão esmagador para praticamente a totalidade das pessoas, sendo um tema central de todas as religiões e de quase todas as filosofias. Epicuro estabeleceu que a morte simplesmente não é um problema, pois, quando existimos, ela não existe; quando ela existe, nós não existimos e não podemos ser afetados por ela. Livre assim do peso da morte, o espírito de Marx se voltou para a vida. E não para a vida individualista das grandes almas de seus primeiros ideais românticos, mas para a vida concreta conceituada por Epicuro, com sua feiura a ser embelezada por feitos como o de Prometeu, castigado pelos deuses por ter dado o fogo aos seres humanos, e assim melhorado a vida destes. Ainda mais agudos se tornaram esse encontro com a vida e esse desejo de, como Prometeu, servir à humanidade, quando, findos os estudos universitários e, querendo casar, Marx afinal resolveu trabalhar e, não tendo sido aprovado como professor universitário, por suas opiniões heterodoxas sobre religião, e tendo verificado, até mesmo pelas reações de sua própria família, e até de sua própria noiva, que não tinha vocação para poeta, ficcionista ou autor de teatro, no exato momento em que filosoficamente Marx dera as costas à morte e se voltou para a vida, ele foi ser jornalista, em 1842, aos 24 anos. Ao deparar com uma notícia em que proprietários de terras se queixavam de que camponeses estavam roubando madeira e lenha de suas árvores, Marx sem dúvida se lembrou de seus próprios arroubos românticos quando se pôs ao lado dos pobres “ladrões”: “Com uma noção nebulosa de vossa excelência pessoal, poeticamente enamorados de vós mesmos, vós ofereceis àqueles que se relacionam convosco o vosso caráter individual contra as vossas leis. Devo confessar que não partilho desta noção romanesca sobre o que é um dono de floresta”. Como mostra esse trecho que escreveu num artigo para a “Gazeta Renana”, ao abandonar o idealismo na filosofia e o individualismo na arte, Marx dera um passo decisivo em favor do ideal prometeico de desafiar os deuses ou os poderosos – principalmente desmascarando as ideias que estes fazem de si próprios –, para servir aos humanos. Enveredando pelo jornalismo crítico, Marx enveredou também pela defesa das maiorias oprimidas contra as minorias opressoras, caminho que o levaria a se tornar sucessivamente um tribuno do povo, um democrata radical, e enfim um comunista, isto é, um partidário de que os bens desta terra fossem de propriedade pública (não estatal; por exemplo, ele era contra o ensino em escolas estatais, pois ensinariam a doutrina encarnada no Estado vigente; era a favor de escolas públicas que fossem controladas não pelo Estado, mas pela sociedade). Seu primeiro artigo, sintomaticamente, foi sobre as leis prussianas a respeito da censura à imprensa, inspirado sem dúvida por uma frase de Voltaire que o pai de Marx repetia incansavelmente para seu filho; “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas lutarei até a morte pelo vosso direito de dizê-lo”. Evidentemente, o artigo foi censurado na Prússia e acabou sendo publicado, na íntegra, na já então democrática Suíça. Paralelamente à sua carreira jornalística, prematuramente encerrada como carreira profissional de diretor de jornal por sua participação em movimentos políticos radicais, mas continuada até o fim de sua vida como carreira intelectual, por inumeráveis artigos como colaborador em diferentes publicações, principalmente americanas, Marx, já deixados muito longe os sonhos de literatura criativa, voltou-se para a não ficção, escritos filosóficos, estéticos, históricos, políticos e, mais tarde, econômicos. Mas Marx continuou sendo um leitor voraz e a aproveitar tudo que lia para melhorar e ilustrar o que escrevia. Prawer vai mostrando como as leituras de Marx despertaram no espírito do jovem jornalista algumas de suas ideias fundamentais como grande pensador. Por exemplo, a ideia de que os seres humanos não sabem o que realmente fazem, mas se iludem quanto a seus próprios propósitos e quanto ao resultado efetivo de suas ações – ideia que está na origem de seus conceitos de alienação, ideologia e falsa consciência –,, Marx colheu em parte, diz Prawer, de suas leituras de grandes romances e grandes peças de teatro a respeito de quiproquós e de comédias de erros, e de autoenganos, especialmente de personagens que afetavam grande ideia de si mesmos, mas que aos olhos dos espectadores e dos leitores apareciam como grotescos e ridículos. Do mesmo modo, e sempre de acordo com Prawer, a primeira centelha do conceito do fetichismo da mercadoria surgiu no cérebro de Marx durante a leitura de um livro do nobre francês do século 18 Charles Debrosses (também grafado Des Brosses), amigo dos iluministas, que examinou as crenças dos habitantes da África Ocidental segundo as quais certos objetos gozavam de propriedades sobrenaturais, a que Debrosses, a partir da palavra portuguesa “feitiço”, deu o nome de “deuses-fetiches”. Marx transportou o conceito de fetichismo para a mercadoria, ao mostrar que esta, simples resultado do trabalho humano – como os objetos produzidos pelos nativos da África Ocidental – aparecia – e continua aparecendo, talvez hoje mais do que nunca – como encarnando não se sabem quais maravilhas. (Mais tarde o conceito seria utilizado pelos profissionais do psiquismo se referindo ao desejo sexual por objetos não sexuais, como pés ou calcinhas). Nessa época também, impressionado, segundo Prawer, pela extrema desigualdade entre os seres humanos que ia descobrindo como jornalista, Marx passou a se inspirar em suas leituras sobre Diógenes, o filósofo grego antigo que andava pelas ruas e espaços públicos com uma lanterna na mão, alegando que estava à procura de alguém que fosse realmente “um ser humano” tal como era altivamente definido como obra suprema da Criação pelos demais filósofos da época, sem jamais encontrar alguém que se encaixasse em tão perfeita definição. Do mesmo modo, como no samba de Elzo Augusto, José Saccomani e Jorge Martins, imortalizado na voz do cantor Gilberto Alves, Marx saiu procurando “de lanterna na mão” seres humanos, mas não via seres humanos, via exploradores e explorados, pessoas que sabiam ser ferreiros ou criadores de porcos, ou serralheiros, mas não sabiam como ser propriamente seres humanos na plenitude da palavra. Ao contrário do que diz o samba, no entanto, Marx, jamais ficou na situação de “agora, jogar a lanterna fora” Como cada ser humano podia cumprir tudo que promete o seu potencial? Como poderia cada ser humano ser caçador de manhã, pescador à tarde e crítico literário à noite? Encarnando-se como Diógenes, procurando o ser humano plenamente humano, que nunca fosse usado como coisa que faz cobertores, ou que planta milho, ou que lava roupa para outro ser humano, Marx julgou tê-lo encontrado entre os trabalhadores, mas só se fossem liberados – e liberados, justamente, do trabalho, que para Marx, mais do que uma atividade nobre, era uma maldição. Ele estava à procura de seres humanos que tivessem as qualidades positivas dos trabalhadores – a de serem produtivos, mas que não fossem obrigados a produzir o que não queriam para pessoas de que não gostavam. Em seguida, diz Prawer, Marx, ao pôr-se a campo para conseguir, em sua denúncia contra um mundo desumano, a adequada descrição dos burgueses em particular e dos exploradores em geral, e dos sedutores que prometem mundos e fundos aos seres humanos para mais bem manipulá-los, recorreu às descrições de Shylock por Shakespeare – o agiota que exige um pedaço do corpo de um jovem como pagamento de uma dívida – e de Mefistófeles por Goethe, o diabo que compra a alma de um professor em troca de lhe propiciar poder, riqueza e uma vida feliz de eterna juventude. O livro de perto de 500 páginas altamente densas em informações e em conceitos não é passível de ser adequadamente sintetizado no espaço destinado a esse artigo. Basta dizer, para encerrar, que Prawer afirma, na conclusão: “O deleite de Marx com a literatura e sua ansiedade em fazer experiências literárias devem ser vistos como parte de seu empenho em conhecer as melhores coisas que foram pensadas e ditas no mundo.” E, mais adiante: “Quando Marx pensa na literatura, então, ele o faz num amplo contexto econômico, social, histórico. Quando pensa num autor particular, ou num corpo particular de composições literárias, ele o faz em relação a outros autores, outras composições, em muitas línguas.” No mundo já globalizado a partir de meados do século 19, não havia mais lugar, achava Marx, para unilateralismos nacionalistas ou para estreiteza mental, como ele diz no “Manifesto Comunista”. Marx consagrou definitivamente, também no “Manifesto”, o termo “literatura mundial”. A tal ponto que Prawer, com todo seu esforço, não pôde abarcar todo o universo vasculhado por Marx, pois seu livro é basicamente limitado a autores ocidentais, quando Marx leu tudo que estava traduzido das literaturas orientais para línguas ocidentais, e costumava citar, por exemplo, místicos muçulmanos.

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