31 de janeiro de 2010

A ficção do polemista Diogo Mainardi

A resenha a seguir foi encomendada há tempo pelo Diário do Comércio, de São Paulo:

Mainardi, um artista em progresso


Aproveitando o embalo da venda de 40 mil exemplares, desde dezembro de 2004, do livro de crônicas A tapas e pontapés, do jornalista, escritor e roteirista de cinema Diogo Mainardi, 44 anos, colunista da revista Veja, a editora Record está relançando todas as quatro obras de ficção do autor, o que permite avaliar sua evolução como artista.
O livro de estréia, Malthus (1989), apresentado na própria edição como romance, novela, noveleta e catalogado como conto, é uma imaginosa história, de linguagem vivaz e agradável, cujo fio condutor são as sucessivas mudanças de residência de Loyola y Loyola, um cidadão que vive de vender os móveis da casa onde mora, pertencentes a outras pessoas, e que casa com a filha do capitão de um navio em que mora temporariamente. O livro valeu a Mainardi, aos 28 anos, o Prêmio Jabuti, em 1990. A obra tem o andamento de uma história em quadrinhos, lembra a escrita automática do surrealismo, as comédias de pastelão do cinema mudo, o cinema da nouvelle vague francesa, ou seja, é bastante complexa estruturalmente e bem contemporânea. Como acontece com muitos estreantes, é um livro que depende, para ser plenamente aproveitado, de referências externas – são numerosas as referências à cultura greco-romana, à cultura renascentista, à hagiologia católica romana, etc. etc. – e de um código que deve ser decifrado, acessível somente para iniciados. Também há diálogos longos, em que o leitor a certa altura deixa de saber quem está falando; e Mainardi usa as formas “Procrustes”, ao invés de Procrusto; “monastério”, ao invés de mosteiro, e Joana de “Castilha”, ao invés de Joana de Castela.
O segundo romance de Mainardi, Arquipélago (1992), exige ainda mais do leitor para ser bem aproveitado. Trata-se de uma ficção filosófica, uma espécie de anti-utopia ou distopia, sobre sobreviventes de uma inundação causada pelo rompimento da barragem de Ilha Solteira (SP), que se abrigam na abóbada de uma igreja, única coisa que permanece acima das águas no horizonte visível, e que tentam, sem êxito, criar uma nova sociedade. O texto é bastante requintado, mas exige conhecimento profundo de filosofia para ser bem compreendido. Além disso, o autor usa termos eruditos pouco usuais, como “viso” (no sentido de “fisionomia”), “improviso” (como adjetivo, no sentido de “improvisado”, “imprevisto”) e “vorticoso” (no sentido de “vertiginoso”).
No seu terceiro romance, Polígono das Secas (1995), que na verdade poderia ser considerado uma novela-ensaio, Mainardi mostra uma grande evolução, no sentido de que a obra não depende de referências externas para ser plenamente aproveitada. Trata-se de uma sucessão de episódios, sem um entrecho propriamente dramático, sobre sertanejos nordestinos, cada um deles apresentado, não como “antes de tudo um forte”, ao contrário do que escreveu Euclides da Cunha, mas como bárbaro, supersticioso e incapaz de raciocínio lógico. Sucedem-se as torturas, mutilações, assassínios, crendices e o espalhamento propositado de doenças contagiosas. A obra, que fica entre a ficção de terror e o grand guignol francês, demonstra um grande esforço de pesquisa sobre o Nordeste, cujas paisagens naturais e sociais são descritas com precisão. Pelo lado ensaístico, há uma crítica aos famosos romances regionalistas nordestinos – e mesmo à obra de Guimarães Rosa –, no sentido de que teriam assimilado a tosca visão-de-mundo dos sertanejos, ao invés de criticá-la do ponto-de-vista da chamada alta cultura. O estilo é frio, impiedoso, sem emoção e sem esperança, mas está longe de ser desagradável. O livro se realiza mais como documentação social do que como grande estética.
Também mais documental do que estético, mais informativo do que belo, mais satírico do que romanesco, mais picaresco do que dramático, é o último romance do autor, Contra o Brasil (1998). Trata-se igualmente de uma narrativa ensaística, em que o lado narrativo enfoca a passagem do personagem principal, Pimenta Bueno, pelas terras dos índios Nambiquara, um dos mais “primitivos” do planeta (o mais “primitivo” é o povo de Andamã, ilha indiana, que é o único a não controlar o fogo), e o lado ensaístico é composto de uma série de citações de autores estrangeiros que visitaram o Brasil, do século 16 ao século 20. Entre eles estão nomes famosos como o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss e os poetas Giuseppe Ungaretti, italiano, e Joseph Brodsky, russo, e que invariavelmente denunciam as mazelas brasileiras – a escravidão, a contribuição quase nula para as artes e as ciências universais, as torturas, a corrupção, etc. etc. – numa documentação impressionante sobre os males do país e as limitações da nossa cultura. Infelizmente, a maior parte da documentação cobre os séculos 16 a 19 ou os Nambiquara, pouco se falando do século 20. Não se fala, por exemplo, do Estado Novo ou do regime militar. Nesse romance, é de notar que, desta vez, ao contrário de Malthus, os falantes dos diálogos estão muito bem identificados, com seus nomes invariavelmente vindo antes de suas falas, como num texto de teatro. O romance é uma espécie de Macunaíma em que os heróis não são louvados, e sim atacados, por não terem nenhum caráter.
Uma observação a ser feita é que o povo brasileiro ainda está em formação, pois a escravidão impediu a sua constituição e ainda há seqüelas disso, e é cedo para dizer se seu impacto sobre o mundo vai ser negativo ou positivo. Na verdade, embora tenha como alvo o povo todo, as citações de Mainardi atacam mais as elites e os povos “primitivos” do que os brasileiros em geral, além do que quase não se referem a épocas mais recentes.
Desde 1999, quando começou sua coluna na Veja, Mainardi nunca mais publicou um romance. Fica nos devendo ainda uma obra mais plenamente realizada, mais artística, mais à altura de seu talento e de sua cultura.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do ensaio biográfico Canhoteiro, o Homem que Driblou a Glória (Ediouro) e do romance-ensaio O Mundo Como Obra de Arte Criada pelo Brasil, lançado pela Editora Casa Amarela.

Um comentário:

Gabriel Birkhann disse...

Parabéns,Renato,um jornalista série e íntegro de esquerda,que escreveu uma grande resenha sobre Mainardi.