7 de setembro de 2010

A audácia de Bivar

Há algum tempo o Diário do Comércio de São Paulo me encomendou a seguinte resenha:

A audácia estilística dos contos de Antonio Bivar

A característica mais atraente destes “Contos atrevidos”, do ficcionista e dramaturgo Antonio Bivar, volume publicado pela Prumo, é a prazerosa desenvoltura com que o autor desempenha a alegria do livre criar só criar, audazmente ignorando, com o atrevimento assinalado no título, os cânones consagrados do gênero.
Com efeito, desde os contistas do século 19 Edgar Allan Poe, americano; Guy de Maupassant, francês, e Anton Tchekhov, russo, a receita do conto bem-sucedido vinha sendo a de que a pequena obra-prima tinha de ser um todo perfeito fechado em si mesmo, com cada frase e mesmo cada palavra, desde o início, preparando o final como um desenlace inelutável.
Com Bivar é diferente. Cada conto, trate de uma jovem que, diferentemente dos jovens de seu círculo, não se dispõe a portar no corpo uma tatuagem, ou de uma jovem que prefere portar todas as tatuagens do mundo e todos os piercings em seu corpo, e nenhuma idéia na cabeça, é como um calidoscópio que abre para várias possibilidades, das quais o autor, com alegre arbitrariedade, escolhe uma, ao deus-dará, com uma alegria e uma felicidade que chegam a ser quase irresponsáveis.
Ele faz, por exemplo, a irmã da famosa escritora do começo do século 20, Virginia Woolf, irmã que forma um casal de pintores com seu marido, evocar paisagens brasileiras num dos contos e até o casal conversar sobre Lampião e Maria Bonita, sem esclarecer se se está baseando em fatos reais ou na sua pura e desenfreada imaginação.
É plena a liberdade de forma e de conteúdo dos contos, algumas vezes de uma leveza que porém é plenamente sustentada, com todo o conto armado para a simples palavra final desencadear uma completa surpresa, como a mera menção da idade de um personagem, que choca de chofre quem lê. Além disso, Bivar também se destaca, nesses contos, pela contemporaneidade.
Este presente cronológico, que nos chega como presentes presenteados, tem sido pouco explorado pelos ficcionistas, que historicamente preferem reportar-se ao universo de décadas atrás. Bivar, na quase totalidade dos contos deste livro, prefere situar-se na voragem das vivências dos dias atuais, inspirando-se tanto num açaí numa tigela quanto numa “trash de butique”, isto é, numa pessoa jovem que, cheia de tatuagens e piercings, passa a vida passeando pelas galerias de um centro comercial.
Não faltam outras figuras tipicamente contemporâneas, como a mulher executiva que, embora se relacione com um homem só, prefere morar sozinha e apenas o encontra para o sexo sem amor, ou a mulata “gostosíssima” que surge como um relâmpago no universo da moda como uma celebridade, para sumir em seguida numa voraz dobra do tempo.
A velocidade com que Bivar narra seus contos, uma velocidade rigorosamente calidoscópica, por vezes deixa o leitor deliciosamente desnorteado. Por exemplo, nas sucessões prolongadas de diálogos, em que se cria o efeito de vertigem de, a certa altura, não se saber mais quem está falando, se é um dos dialogantes ou o outro. Isso, que seria marca de defeito num estreante, surge nas mãos experientes e hábeis de Bivar como um efeito deliberado, que é afinal de contas tanto teatral como realista, pois nas discussões da vida real um se vê de repente defendendo a posição do outro, à qual antes procurava desqualificar.
Outros efeitos surpreendentes de Bivar são de que, num conto, o leitor vai se preparando, com certeza absoluta, para se deparar com uma piada, e no final se vê assustadamente comovido com um pungente drama nada piegas. Outras vezes, também com crescente certeza, o leitor se prepara para um desenlace trágico – e no fim percebe que, afinal, estava lidando apenas com uma anedota. Pois o atrevido Bivar foi criando esses contos como bem entendeu, sem dar atenção a cânones e convenções, preocupado apenas em deixar fluir a sucessão de palavras encantadas e de situações maravilhosas. Isso se empregarmos a palavra “encanto” no seu sentido mágico e o termo “maravilha” no seu sentido filosófico. Tudo, nesses contos, brilha como novidade.

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