No cinquentenário de Brasília, o Diário de S. Paulo me encomendou o seguinte artigo:
A esperança que se tornou desolação
Renato Pompeu - especial para o Diário
Quando Brasília foi inaugurada, eu tinha 18 anos; tinha acabado de começar a trabalhar como jornalista, à noite, e de entrar para o curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que freqüentava à tarde. Assisti à inauguração, pela televisão em branco e preto, na casa, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo, da família Sader, em companhia de meu colega desde o cursinho, Eder Sader. Este, já falecido, foi professor de Sociologia na USP e hoje é nome de praça na Vila Madalena, na zona oeste, irmão mais velho de Emir Sader, que se tornou um bem conhecido cientista político, professor e jornalista.
Eder e eu estávamos emocionados. Sentíamos que aquele era um grande momento, que o Brasil seria outro após aquela cerimônia. Éramos bastante críticos em relação ao presidente Juscelino Kubitschek, que julgávamos não suficientemente progressista. Mas tínhamos toda simpatia em relação à nova capital.
Tal entusiasmo não nos foi transmitido, em geral, pela mídia da época, com exceção da revista “Manchete”, único órgão da grande imprensa a apoiar a construção da nova capital. A imagem que a mídia em geral transmitia de Brasília era a de um elefante branco, de um sonho megalomaníaco de Juscelino Kubitschek, de um poço sem fundo de corrupção em escala inimaginável. Praticamente não passava um dia sem que se denunciasse um escândalo na Novacap, a autarquia encarregada de executar as obras da nova capital (o Rio passou a ser chamado de Belacap e São Paulo, de Supercap).
Eder e eu estávamos alimentados, não pelas denúncias da mídia em geral, mas pelas páginas épicas da “Manchete”, com fotografias monumentais de candangos – os operários que construíam Brasília – muitas vezes de pés descalços, que caminhavam aos milhares por estradas poeirentas, vindos de seus barracos nos acampamentos, rumo às obras-primas arquitetônicas de grande beleza que estavam erguendo.
Afinal, eram os tempos febris dos primeiros automóveis fabricados no País, da abertura de estradas por todos os cantos, da vulgarização dos eletrodomésticos e da televisão – um mundo novo se abria a nossos olhos, e surgiam aos magotes os profetas de novos tempos, de novas utopias.
Estávamos longe de imaginar que, poucos anos depois, ocorreria o golpe de 1964 – embora, diga-se a bem da verdade, o golpe tenha sido apoiado pela maioria da opinião pública. Não faltavam avisos. O professor de Letras da USP Tercio Redondo lembra que, numa crônica escrita antes do golpe, publicada no livro Legião estrangeira, a genial escritora Clarice Lispector expressava sua profunda inquietação diante da cidade que Juscelino Kubitschek implantara no Planalto Central: “Se eu dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia veem nisso uma acusação.”
Diz Redondo: “No descampado onde se erigiu a manta de concreto concebida por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer a escritora constatava que ‘além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece pela crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira’.” Conclui o professor: “E a nova capital, junto com o país, estava de fato ‘à beira’; vivia a antevéspera do golpe militar que instaurou a ditadura”.
Continua o professor Redondo: “Clarice Lispector exprimiu o espanto provocado por um projeto racionalizante: ‘Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Em Brasília não há por onde entrar, nem há por onde sair’.” De fato, se tem a impressão que à cidade só se pode chegar, ou dela sair, de avião.
Eder e eu, vendo a inauguração pela TV, sentíamos Brasília muito próxima. Na verdade, Brasília é distante. Diz o professor de Geografia da USP José William Vesentini: “O Plano Piloto mesmo pode causar uma falsa impressão de homogeneidade, ele parece de fato uma cidade socialista – pensando-se, evidentemente, no socialismo real do século 20 e não no ideal utópico do século 19, com a vida aparentemente controlada, com uma vigilância pairando no ar, com as coisas aparentemente nos lugares, isto é, com o seu rígido zoneamento, com a ausência de um verdadeiro centro urbano e de multidões nas ruas Mas quando se vai à periferia, às cidades satélites mais pobres (e o Plano Piloto não existiria sem elas), nota-se que é um local que reproduz todas as desigualdades e injustiças do Brasil como um todo”.
Vesentini encerra: “Se a capital ainda fosse o Rio de Janeiro, será que o grau de distanciamento e até menosprezo dos políticos na escala federal, deputados, senadores, ministros e o próprio presidente, pela população em geral seria o mesmo? Teriam ocorrido com a mesma gravidade os escândalos de corrupção, desvio de recursos públicos, corporativismo que leva à impunidade, etc., que repetidamente parecem ocorrer em Brasília? Ou uma maior proximidade com os reclames e os problemas populares, uma maior sujeição à salutar pressão popular poderia ter amenizado pelo menos um pouco essa situação vergonhosa?”
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