29 de agosto de 2011

Um bom artigo sobre a crise atual



Eis a versão em português de Portugal de um artigo publicado na revista alemã Exit, dirigida por Robert Kurz, artigo de autoria de Claus Peter Ortlieb

A inocência perdida da produtividade

«O capital, em si mesmo, é uma contradição em movimento, força a redução ao
mínimo do tempo de trabalho, enquanto define, por outro lado, o tempo de
trabalho como a única medida e fonte da riqueza.»
Marx, Grundrisse.

O chamado progresso técnico e o aumento constante da produtividade são
frequentemente apresentados como compondo um caminho potencial para a vida
boa e a solução para todos os problemas da humanidade. Olhando para a
duplicação da produtividade nos últimos 30/40 anos, significando isso que
com a mesma quantidade de tempo gasto a trabalhar é hoje produzida uma
quantidade duas vezes maior de bens do que nos anos 1970, deveria
concluir-se que, desde então, caminhámos a passos largos em direcção a uma
vida de abundância. Evidentemente, qualquer pessoa que o afirmasse, perante
as actuais crises, que se manifestam simultânea e cumulativamente, no plano
ambiental, dos recursos, económico e financeiro, seria justamente vista como
fantasista. Algo no cálculo e na sua promessa está, portanto, errado.
Onde reside o erro? Um primeiro indicador para uma resposta a esta questão
é-nos dado por uma palavra muitas vezes repetida neste contexto:
competitividade. O significado de produtividade assenta, antes de mais, na
comparação: a empresa mais produtiva consegue fazer mais produtos e
vendê-los mais barato e, desse modo, empurra os seus concorrentes para fora
do mercado. As zonas mais produtivas podem mesmo tornar-se líderes mundiais
nas exportações, ao passo que as menos produtivas podem ter de conformar-se
com o colapso das suas indústrias. Nesta medida, torna-se claro que, em
regra, aumentos desiguais na produtividade não beneficiam igualmente todos
os sujeitos económicos, prejudicando mesmo muitos deles. Também se torna
claro que, em condições de concorrência, aumentos na produtividade não são
simplesmente usados para a redução geral das horas de trabalho, mas
resultam, ao invés, num menor número de empregados trabalhando mais.
Isto, porém, não responde ainda à questão de que efeito têm os aumentos na
produtividade prolongados e induzidos pela concorrência no sistema
capitalista global como um todo. De acordo com a ideologia liberal do
progresso, que gosta de recorrer à «sobrevivência dos mais aptos», de
Darwin, e ao princípio de Schumpeter da «destruição criativa», a dinâmica da
concorrência impulsiona não só o avanço técnico mas também o avanço social.
É óbvio que esta ideologia tem sido desacreditada pelo curso dos
acontecimentos no mundo, pelo menos agora, neste início do século XXI;
talvez menos visíveis sejam as razões para que isto suceda.

Produtividade, valor e riqueza material

Dizemos que se verifica um crescimento na produtividade quando a mesma
quantidade de tempo de trabalho tem como resultado uma maior produção
material ou - o que é essencialmente a mesma coisa - quando a mesma
quantidade de bens materiais pode ser produzida com menos trabalho,
diminuindo assim o seu valor. A produtividade, portanto, é a proporção de
bens materiais para o tempo de trabalho necessário à sua produção. Para se
compreender a produtividade e as suas mudanças é absolutamente necessário
distinguir riqueza na forma de valor e riqueza material1. Quando Marx afirma
(na epígrafe) que o capital define o tempo de trabalho como a única medida e
fonte da riqueza, ele está a discutir a riqueza na forma de valor, uma forma
historicamente específica de riqueza que é válida apenas para a sociedade
capitalista e que constitui o seu núcleo interior (Postone, 1993: p. 25). A
riqueza material, por seu turno, é composta por valores de uso que podem ser
ou não produzidos como mercadorias. Quinhentas mesas, 4000 pares de calças,
200 hectares de terra, 14 conferências sobre nanotecnologia ou 30 bombas de
fragmentação seriam considerados, neste caso, riqueza material. Esta
apreciação centra-se apenas na aplicação útil de cada coisa.
O capitalismo distingue-se de todas as restantes formas sociais pelo domínio
daquela outra forma de riqueza, ou seja, a riqueza abstracta ou na forma de
valor, que toma a forma de dinheiro e é medida pela quantidade de trabalho
necessário para a produção das mercadorias. A riqueza material é um
acessório necessário ao negócio capitalista, mas não é o seu objectivo. Este
consiste na valorização do valor, no aumento da riqueza abstracta: eu
invisto dinheiro no processo produtivo, com a expectativa de que, no final,
terei mais dinheiro (mais-valia). Uma actividade económica que não
pressuponha pelo menos este aumento na riqueza abstracta nem sequer ocorre.
A diferença entre as duas formas de riqueza não é, de forma alguma, por si
só evidente. Ela não desempenha qualquer papel no quotidiano capitalista,
onde existe apenas «riqueza simplesmente». A crítica do capitalismo é, neste
ponto, sobretudo a crítica da distribuição de riqueza. A crítica marxiana da
economia política é, pelo contrário, essencialmente a crítica desta forma
singular, insensata e exorbitante de riqueza (Postone, 1993: pp. 26s), de
cujo funcionamento tornámos as nossas vidas dependentes. Esta forma, porém,
funciona - mesmo à luz dos seus próprios padrões - cada vez menos.
No conceito de produtividade, o foco permanece nas relações quantitativas
entre as duas formas de riqueza criadas na produção de mercadorias. Elas
estabelecem-se num dado momento, ainda que, como precisou Marx, estejam
constantemente em fluxo (Marx, 1976: pp. 136s):

«Um quantum maior de valor de uso representa, em si e por si, maior riqueza
material, dois casacos mais que um. Com dois casacos podem vestir-se duas
pessoas, com um casaco somente uma pessoa, etc. Contudo, a uma massa
crescente de riqueza material pode corresponder um decréscimo simultâneo da
magnitude de valor. Esse movimento contraditório resulta do duplo carácter
do trabalho. Quando falamos de "produtividade", evidentemente, estamos
sempre a falar da produtividade do trabalho útil concreto (.) ela deixa
naturalmente de ter qualquer relação com esse trabalho assim que nos
abstraímos da sua forma útil concreta. O mesmo trabalho, portanto,
desempenhado durante o mesmo período de tempo, produz sempre a mesma
quantidade de valor, independentemente de quaisquer variações na
produtividade.»

Vale a pena enfatizar a última frase se quisermos compreender o seguinte: um
aumento na produtividade (1) não altera o valor (medido em tempo de
trabalho) dos bens produzidos num dado dia de trabalho; (2) aumenta, ao
invés, a riqueza material produzida num dado dia de trabalho; e (3) diminui,
consequentemente, o valor de cada produto individualmente considerado.

As necessidades da produção de riqueza abstracta

Por estas razões, a tendência histórica, estabelecida empiricamente no
capitalismo, em direcção a um aumento contínuo da produtividade conduz a uma
desvalorização igualmente contínua da riqueza material. E como pode ser
demonstrado (uma vez que a mais-valia é sempre menor do que o valor total de
uma mercadoria; Ortlieb, 2009: pp. 33s), a partir de um certo ponto já
atingido do desenvolvimento capitalista a contribuição de qualquer unidade
material produzida como mercadoria para a mais-valia total produzida pela
sociedade torna-se cada vez menor.
O capital, cujo único interesse reside na maior acumulação possível de
mais-valia, dá tiros nos pés com os aumentos contínuos da produtividade,
visto que o consumo material necessário para obter qualquer mais-valia
aumenta cada vez mais. A questão que se coloca é a seguinte: por que razão
age o capital contra os seus próprios «interesses»? A resposta deve ser
procurada no facto de que o problema se põe de forma diferente a partir do
ponto de vista dos capitais individuais: na concorrência (das empresas, das
economias locais e nacionais), o capital individual com maior produtividade
que os outros obtém vantagem e consegue expandir a sua quota de mercado.
Daqui resulta a situação paradoxal de serem precisamente os capitais
individuais que conseguem uma maior parcela do bolo de mais-valia social
total os mesmos que mais fazem diminuir a dimensão total do bolo. É esta a
«contradição em movimento» que Marx identificou há 160 anos, em que o
capital, limitando-se a seguir a sua lógica, mina a própria forma de riqueza
necessária para a sua existência. Quem não for capaz de participar na
expulsão de trabalho da produção é varrido para fora do mercado.
Na medida em que o objectivo de todos os negócios no capitalismo é a
obtenção de mais-valia, o que significa que o dinheiro investido no processo
de produção tem de ter aumentado no final, uma economia de mercado a
funcionar sem crescimento simplesmente não existe, já que ninguém exerceria
actividade económica sem perspectivas de crescimento. Esta questão é
especialmente digna de atenção por parte de todas aquelas pessoas que, com
boas intenções, afirmam que as economias nacionais, a bem do ambiente e da
humanidade, deveriam ser usadas no futuro para produzir sem crescimento, não
querendo, porém, falar do fim do capitalismo.
O que é que cresce tão compulsivamente? Da perspectiva do capital, o que
deve crescer é a riqueza abstracta e, com ela, a mais-valia que corresponde
a um stock ainda maior de capital, com a crescente acumulação de capital. No
caso, porém, da produtividade crescente, o produto material deve crescer
mais rapidamente que a mais-valia, uma vez que mesmo um nível constante de
produção de mais-valia exigiria um crescimento da riqueza material
correspondente ao da produtividade.
A produção de riqueza abstracta está sujeita à pressão dupla da mais-valia
crescente e da produtividade crescente, o que, por sua vez, exige uma taxa
ainda mais elevada de crescimento em termos de riqueza material.
Historicamente, o capitalismo deu resposta a esta compulsão inata para o
crescimento através de duas enormes ondas de expansão (Kurz, 1986: pp. 30s):
(1) expansão «para o exterior», através da conquista sucessiva dos ramos de
produção que já existiam antes do capitalismo, da transferência da população
trabalhadora para um estado de dependência salarial e da conquista de espaço
geográfico; (2) expansão «para o interior», através da criação de novos
ramos de produção e, em ligação com eles, de novas necessidades, através da
produção para o consumo em massa e através da penetração no espaço
«feminino» dissociado de reprodução da força de trabalho.
Os espaços que aqui são preenchidos são, por natureza, materiais e,
consequentemente, finitos. Através do aumento exorbitante da riqueza
abstracta, eles só podem ser preenchidos até certo ponto. Esse ponto parece
já ter sido atingido simultaneamente nos dois aspectos seguintes:

Os limites internos e externos do modo de produção capitalista

Referindo-se ao movimento de expansão do capital, Kurz constatou, já em
meados dos anos 1980, como efeito da «revolução microelectrónica» (Kurz,
1986: pp. 31s):

« Ambas as formas ou momentos essenciais do processo de expansão capitalista
começam hoje, porém, a esbarrar em limites materiais absolutos. O nível de
saturação da capitalização foi alcançado nos anos sessenta; esta fonte de
absorção de trabalho vivo chegou finalmente a um impasse. Ao mesmo tempo, a
confluência de tecnologia científica e organização científica do trabalho na
microelectrónica implica uma nova etapa fundamental na transformação do
processo de trabalho material. A eliminação em massa de trabalho produtivo
vivo como fonte de criação de valor deixou de poder ser compensada por novos
produtos "embaratecidos" entrados na produção em massa, porque esta produção
em massa deixou de proporcionar uma reabsorção na produção de população
trabalhadora "tornada supérflua" previamente noutro lado. Assim se destrói
de um modo historicamente irreversível a relação entre eliminação de
trabalho produtivo vivo pela transformação científica, por um lado, e
absorção de trabalho produtivo vivo por processos de capitalização ou por
criação de novos ramos de produção, por outro: de agora em diante, será
inexoravelmente eliminado mais trabalho do que pode ser absorvido.»

O reconhecimento de que, «de agora em diante, será inexoravelmente eliminado
mais trabalho do que pode ser absorvido» assenta fundamentalmente no
pressuposto de que o capital deixou de estar em posição de gerar inovações
produtivas que compensem as perdas na produção de valor e de mais-valia
induzidas pelas inovações no processo. Fala-se muito nisso, mas ainda hoje,
24 anos depois, não se vislumbram tais inovações produtivas. Como afirmámos,
não nos referimos simplesmente a novos produtos e às necessidades
correspondentes, mas a novos produtos cuja produção exija quantidades de
trabalho tais que possam, pelo menos, compensar os potenciais de
racionalização da microelectrónica.
Empiricamente, os limites internos da produção capitalista surgem na forma
de concorrência predadora e de desemprego estrutural, como sucede na
indústria automóvel, cuja situação foi muito bem descrita no Die Zeit, na
sua edição de 16 de Outubro de 2008, num artigo de D. H. Lamparter,
intitulado «Travagem de emergência» [Notbremsungen]:

«A dificuldade da situação: mesmo que os fabricantes alemães conseguissem
manter constantes as suas vendas de automóveis, com cada modelo a pressão
sobre os empregos aumenta. Quando a produção passou do Golf V para o Golf
VI, um executivo da Volkswagen, Winterkorn, revelou com orgulho, na
apresentação da mais importante nova linha da empresa, que a produtividade
cresceu cerca de 10 por cento em Wolfsburg e mais de 15 por cento em
Zwickau. Isso significa que para a montagem do mesmo número de carros são
necessários menos 15 por cento de trabalhadores. Portanto, se as vendas do
Golf VI não aumentarem correspondentemente, os empregos ficam em perigo. E o
mesmo sucede com os novos modelos da BMW, da Mercedes ou da Opel. Nalguns
desses casos, a produtividade deu um salto de 20 por cento.»

Se a produtividade cresce 15 por cento, as vendas devem ter um crescimento
correspondente, para que seja produzida a mesma massa de valor e de
mais-valia (medida em termos de tempo de trabalho), uma vez que é apenas a
partir desse valor que são gerados os lucros. Se esse objectivo não for
atingido, não são afectados apenas os empregados que são despedidos, também
o é o capital envolvido na indústria automóvel, que deixa de conseguir obter
a mesma mais-valia que antes. As empresas mais ameaçadas pela queda dos
lucros são as que não conseguem acompanhar o crescimento da produtividade, o
que explica o orgulho do executivo da Volkswagen, que pode ter como
expectativa uma maior quota de mercado e mesmo um aumento dos lucros. No
entanto, para resumir, no ramo como um todo uma produtividade mais elevada
levará necessariamente a lucros mais reduzidos.
Juntamente com estes limites internos, os limites externos entram em cena
com os limites ecológicos do crescimento, ainda não reconhecidos
adequadamente, como mostra o fantasma de uma «economia de mercado sem
crescimento». Já no início dos anos 1990, Postone fazia referência a esta
relação (Postone, 1993, pp. 311s):

«Deixando de parte considerações sobre os possíveis limites ou barreiras à
acumulação de capital, uma consequência decorrente desta dinâmica
particular - que gera aumentos na riqueza material maiores que os da
mais-valia - é a destruição acelerada do ambiente natural (.)
O padrão que aqui delineei sugere que, na sociedade em que a mercadoria está
totalizada, existe uma tensão subjacente entre considerações ecológicas e os
imperativos do valor enquanto forma de riqueza e de mediação social (.) A
tensão entre as exigências da forma mercadoria e as necessidades ecológicas
agrava-se à medida que a produtividade aumenta e, particularmente durante as
crises económicas e os períodos de desemprego mais elevado, coloca um sério
dilema. Este dilema e a tensão em que está enraizado são imanentes ao
capitalismo; a sua solução definitiva não será possível enquanto o valor
continuar a ser a forma dominante de riqueza social.»

Na política quotidiana, o dilema aqui descrito surge como um conflito entre
opções políticas ambientais e de desenvolvimento: ao mesmo tempo que é
consensual, no plano da política ambiental, que a disseminação global do
american way of life, ou mesmo apenas do estilo de vida da Europa Ocidental,
traria consigo a catástrofe ambiental em proporções nunca vistas,
instituições que se ocupam do desenvolvimento económico devem perseguir
precisamente esse objectivo, por mais irrealista que seja. Ou, nos termos
deste artigo: empregar apenas metade da força de trabalho mundial disponível
a um nível necessário para a posterior acumulação de capital, mantendo em
simultâneo o nível actual de produtividade (com o correspondente produto
material e utilização de recursos), resultaria no colapso imediato do
ecossistema da Terra.
Seja como for, o modo de produção capitalista atingiu o fim das suas
possibilidades de desenvolvimento, em resultado da sua própria dinâmica
compulsória. À sociedade global colocam-se duas alternativas: ou se submete
àquela dinâmica ou se liberta das pressões da riqueza abstracta e planifica
a reprodução social apenas em função de critérios materiais. O
desenvolvimento da produtividade, então, poderia recuperar a sua inocência:
por um lado, nem todos os possíveis aumentos de produtividade teriam
obrigatoriamente de ser postos em prática, uma vez que nem toda a actividade
se torna mais agradável quanto mais rapidamente for completada; por outro
lado, poderia ser usada para melhorar, de facto, as vidas dos seres humanos.

Nota:
1 Esta diferença é ofuscada pelo facto de que os estudos económicos
empíricos medem a produtividade em PIB (produto interno bruto) por horas de
trabalho, para que o produto do trabalho seja expresso, à partida, apenas em
valores monetários. Porém, o PIB (real) deve representar a quantidade total
de bens produzidos e de serviços prestados. Seria preferível evitar a
confusão que daí resulta.

Bibliografia:
Kurz, Robert (1986), «Die Krise des Tauschwerts», Marxistische Kritik 1, pp.
7-48.
Marx, Karl (1973), Grundrisse: Foundations of the Critique of Political
Economy, New Left Review: Londres.
Marx, Karl (1976), Capital, vol. 1. Penguin Books: Londres.
Ortlieb, Claus Peter (2009), «Ein Widerspruch von Stoff und Form», EXIT!
Krise und Kritik der Warengesellschaft 6, pp. 23-54. [Uma contradição entre
matéria e forma]
Postone, Moishe (1993), Time, Labor, and Social Domination, Cambridge
University Press: Nova Iorque.

Original Die verlorene Unschuld der Produktivität in www.exit-online.org.
Publicado com ligeiras alterações em Denknetz Schweiz (Hg.): Jahrbuch
Denknetz 2010. Zu gut für den Kapitalismus. Blockierte Potenziale in einer
überforderten Wirtschaft. Seite 12 - 19, Edition 8, Zürich 2010. Versão
inglesa aqui.
http://obeco.planetaclix.pt/

Claus Peter Ortlieb

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