31 de janeiro de 2014

Quando os filhos morrem antes dos pais

Do Diário do Comércio de São Paulo - Quando os filhos passam a morrer antes dos pais - Renato Pompeu - Em todas as espécies animais, os pais morrem antes dos filhos e isso faz parte da ordem natural das coisas. Mas, na espécie humana, quanto mais civilizada for a região que ela habita, maiores são as chances de os filhos morrerem antes dos pais. Foi na civilizadíssima Europa que, em duas guerras em menos de trinta anos, no século passado, a maior proporção de pais da história enterrou milhões de filhos. E é no berço da civilização humana, o Oriente Médio, que ao longo de milênios a ordem natural das coisas tem sido mais invertida, e que pais como o escritor israelense David Grossman, 58 anos, têm de enterrar seus filhos, como Uri Grossman, que tinha 20 anos quando morreu em 2006, durante a invasão de então do Líbano por Israel, vítima de um míssil antitanque lançado contra o blindado que comandava como sargento das chamadas Forças de Defesa Israelenses. E é sobre essa situação, de os filhos morrerem antes dos pais, que trata o romance mais recente (2011) de Grossman traduzido para o português, lançado pela Companhia das Letras, “Fora do tempo”. Mas Grossman não transformou sua dor real de pai “órfão” simplesmente numa ficção documental realista. Trata-se de uma narrativa mítica, um tanto semelhante às parábolas bíblicas, em que, numa época atemporal, e num lugar imaginário, pais choram a morte de seus filhos em prosa, poesia e falas dramáticas. O resultado é comovente e emocionante, e também mobilizador contra essas máquinas de guerra com que as supercivilizações invertem de tempos em tempos, principalmente entre outros povos, mas também entre seus próprios povos, a lógica natural das coisas. Grossman nasceu em Jerusalém em 1954, filho de um motorista de ônibus imigrado da Polônia, que em Israel se tornou bibliotecário, e de uma dona de casa nascida na Palestina britânica, filha de um operário especializado em pavimentação de ruas e de uma faxineira. Atraído pela segunda profissão do pai, o jovem David se tornou um leitor assíduo e perspicaz, o que o levou, ao prestar o serviço militar a partir de 1971, a trabalhar no serviço de inteligência; por isso não participou de combates na Guerra do Yom Kippur em 1973. Depois, estudou filosofia e teatro na Universidade Hebraica de Jerusalém e foi trabalhar na Rádio Voz de Israel, onde com o tempo chegou a âncora de jornalismo. Foi demitido em 1988, por se ter negado a sonegar aos ouvintes a notícia de que a liderança palestina havia reconhecido Israel como Estado soberano e decidido fundar seu próprio Estado palestino também soberano. Ele havia estreado como escritor em 1982, aos 28 anos, com a ficção “Duelo”, já lançada no Brasil. Como não-ficcionista, estreou em 1987, com “O vento amarelo”, sobre as precárias condições de vida dos palestinos nos territórios ocupados por Israel na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Embora não seja propriamente bem-visto em seu país cada vez mais conservador e cada vez menos conciliador em relação aos palestinos, Grossman, como esquerdista e pacifista favorável ao que considera direitos dos palestinos, é afamado como escritor, premiado em seu país e no Exterior. Num concurso sobre os 200 israelenses considerados mais importantes em toda a história do país pela sua população, ele conseguiu o 97.o lugar em 2005. Foi a partir de 2006, entretanto, quando Israel invadiu o Líbano para minar o poder da organização política e paramilitar xiita Hezbollah, que Grossman se tornou o grande porta-voz contra a política governamental aprovada pela maioria dos israelenses, de não-reconhecimento do Estado palestino, de repressão contra a população palestina, e da instalação de assentamentos judaicos nos territórios ocupados. Inicialmente, ele foi a favor da intervenção israelense em território libanês, sob a argumentação de que se tratava de uma ação de legítima defesa em relação às atividades do Hezbollah. Mas, a 10 de agosto daquele ano, ao lado de seus colegas escritores, o celebrado Amos Oz e A.B. Yehoshua, Grossman deu uma entrevista coletiva em que instou o governo a buscar um cessar-fogo. Dois dias depois, seu filho morreu em combate. Logo em seguida, foi aprovado o cessar-fogo. Até então, ele tinha evitado tratar, na sua ficção, de política, tema sobre o qual só escrevia em textos jornalísticos. Mas “Fora do tempo” já é sua segunda ficção inspirada pela morte do filho, depois do romance “Até o fim da terra”, de 2008. Tornou-se também um orador, militante e manifestante muito mais ativo, a ponto de ter sido espancado por policiais israelenses num ato público de rua em 2010. Seguramente, o novo livro é um dos mais profundos textos sobre a dor e os mistérios da morte jamais produzidos por mãos humanas.

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