21 de maio de 2013

Pauliceia de Mário, vista de bonde

A resenha a seguir foi encomendada pelo Diário do Comércio de São PAULO: - A Pauliceia de Mário de Andrade, vista de um bonde poético - Renato Pompeu - Foi preciso significativamente um baiano, o poeta, ficcionista, ensaísta e professor universitário Aleilton Fonseca, para produzir um dos livros que mais consagram a paulistanidade, elevando-a a categoria cultural universal, lembrando o dito do grande escritor russo Lev Tolstoi, “Canta a tua aldeia e serás universal”. Trata-se de “O Arlequim da Pauliceia – Imagens de São Paulo na poesia de Mário de Andrade”, obra lançada pela Geração Editorial e pela UEFS Editora. Sedução é fascínio, é isso que sentimos por isso que se apresenta como uma viagem de bonde pela São Paulo da primeira metade do século 20, numa trama em que Fonseca reuniu todos os seus talentos – a poesia, a ficção, a ensaística e a pesquisa erudita – para narrar uma expedição pelos lugares ícones da cidade, entremeada de trechos de poemas do grande escritor e poeta que se considerava mais paulistano do que paulista ou brasileiro, e por fotos da época, referentes aos lugares que Fonseca descreve e Mário de Andrade canta. Navegamos por uma cidade de sonhos, no tempo em que São Paulo era uma cidade cheia da arte de viver, com ruas e vales repletos de prédios encantadoramente europeus dos fins do século 19, um ambiente neoclássico vagamente ítalo-francês, povoado também por exuberâncias verdejantes de árvores, arbustos e relvados plenamente tropicais que se combinavam belamente com os tons predominantemente ocres e pratas do Teatro Municipal e da Catedral Metropolitana. Tudo isso vagamente embaçado pela autêntica garoa – a umidade então permanentemente emanada da Mata Atlântica que, por sobre a Serra do Mar, flanqueava a cidade. Hoje pouco resta da Mata Atlântica nos arredores da cidade e praticamente nada resta da verdadeira garoa, nome hoje reservado ao que antigamente se chamava de chuvisco, como se a cidade precisasse se apegar a um passado que não existe mais, a não ser na imaginação e no coração. Naquela época, as avenidas de fundo de vale eram realmente dignas de seu nome: fitas de prata, como na foto que ilustra o Ponto de Partida da viagem fantástica de bonde, entre morros de floresta virgem. Sobreposto à imagem de uma moderna avenida povoada por velozes carros e possantes caminhões, as ilhas que a dividem ao meio encantadoramente ornamentadas de árvores enfileiradas, enquanto sobre ela se debruçam massas da Mata Atlântica, o texto do Arlequim da Pauliceia proclama: “Meu pensamento é tal e qual São Paulo, é histórico e completo. É presente e passado e dele nasce meu ser verdadeiro”. Nessas duas páginas de um livro de 300 páginas, estão concentradas, como se observássemos pela lâmina de um microscópio eletrônico a constituição de um inteiro ser vivo, todas as virtudes e belezas do livro de Fonseca. A obra é de uma complexidade ímpar. Trata-se de uma composição composta de composições que se referem umas às outras. Cada texto de Fonseca é refletido em cada imagem, que por sua vez é refletida em cada trecho de Mário de Andrade, o qual por sua vez é refletido no texto de Fonseca. A complexidade das referências que se entrecruzam, seja sobre o modernismo sublimado do Prédio Martinelli, seja sobre o urbanismo algo barroco do verdejante Vale do Anhangabaú da época, é digna não só da imagem caleidoscópica do traje recortado em losangos multicoloridos do secular Arlequim, como também do traço mais particular do melhor modernismo, em que, como no romance “Ulisses” do irlandês James Joyce, ou na cidade de São Paulo tanto da época como na de hoje, não só o todo é maior do que as partes, como igualmente cada parte é, literalmente, maior do que o todo. E assim chegamos à essência do livro de Fonseca: como reunião de uma totalidade composta de fragmentos, em que cada pequena parte brilha como um universo próprio, como universo que reúne múltiplos universos autorreferentes, tanto textuais como visuais e poéticos, o livro acaba sendo um arlequinesco poema mais do que modernista.

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