12 de dezembro de 2013
O ar e a canção de Bob Dylan
Do Diário do Comércio de São Paulo
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O ar e a canção de Bob
Dylan, num romance
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Renato Pompeu
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A primeira coisa a se notar a respeito do romance “Ar de Dylan”, do consagrado autor catalão Enrique Vila-Matas, 64 anos que escreve em castelhano e já foi traduzido e premiado em dezenas de países, lançado agora no Brasil pela Cosac-Naify quase simultaneamente à publicação na Espanha ainda este ano, é que na tradução se perde logo de cara um efeito que o escritor quis criar no original. Com efeito, em castelhano, “Aire de Dylan” tanto pode ser traduzido por “Ar de Dylan” como por “Canção de Dylan”, já que “aire” indica tanto “ar” como “ária” e o Dylan se refere ao cantor e compositor Bob Dylan, com o qual o personagem central da trama, um ator fracassado, filho de um escritor famoso, guarda um certo “ar” de parentesco espiritual.
A segunda coisa notável é que Vila-Matas considera este o seu livro mais “livre”, como se nele estivesse dito explicitamente tudo que quis dizer ao longo de sua volumosa obra de dezenas de livros e que só estava, na verdade, implícito. Um dos maiores nomes, internacionalmente, dessa literatura de inventário que é o pós-modernismo ficcional, Vila-Matas, que começou a escrever no início dos anos 1970, quando prestava o serviço militar ainda sob o regime franquista, se consagrou por fazer uma espécie de “ficção de não-ficção”, em que mistura ficção, diário íntimo, jornalismo e ensaísmo, com a combinação de quatro mundos: o mundo da imaginação, o mundo vivencial do próprio autor, o mundo real em que vivemos e o mundo da reflexão sobre a condição humana.
Por que Vila-Matas diz que este é o seu livro mais livre? Aparentemente, se trata de que a ficção em si, a pura imaginação, ocupa em “Ar de Dylan” uma proporção maior em relação às referências ao mundo real. De todo modo, há as evocações eruditas, obrigatórias numa literatura de inventário, a outras obras de arte do passado, à peça “Hamlet”, de Shakespeare (cuja interpretação pelo ator fracassado se mistura às peripécias de sua vida), ao jovem poeta francês Rimbaud que na maturidade se tornou traficante de armas, ao autor americano de ficção científica aterrorizante H.P. Lovecraft, ao personagem-epítome da apatia e da preguiça autodestrutiva Oblomov (do autor russo do século 19 Ivan Gontcharov), ao escritor americano F. Scott Fitzgerald, que fez com um produtor de cinema para o qual trabalhou o que o ator fracassado faz com seu pai famoso, ou seja, o destrói como pessoa ridícula e desprezível. E vai por aí.
A grande identificação do ator, no entanto, é com Bob Dylan, não, evidentemente pela trajetória de sucesso desse cantor, mas pelas sucessivas personificações de Dylan, que ao longo da vida foi assumindo diferentes identidades, desde a de contestador até a de conservador, de judeu a ateu, a católico e de novo a judeu. O ator, afinal, tem várias identidades ou na verdade não tem nenhuma?
A impressão maior que dá é que Vila-Matas está a rigor se divertindo tanto consigo próprio como com seus leitores mais críticos, que incluem não só os seus comentaristas mais conservadores, que o ironizam por escrever do modo pós-moderno, com constantes referências eruditas, simplesmente porque, supostamente, Vila-Matas não teria imaginação ou capacidade de fabular ao estilo dos grandes romances do século 19, como também os jovens inovadores mais extremados, que o censuram por ter parado no pós-modernismo e não escrever no novo estilo internético que aos poucos vai se formulando, não só na Web como nos livros impressos.
A diversão favorita de Vila-Matas, entretanto, é consigo mesmo. Se, de um lado, ele mostra, em “Ar de Dylan” que pode ser, sim senhor, um escritor dotado de muita imaginação, fabulação e fantasia, e que pode ser também tão fragmentado e escorregadio como o twitter, ele faz igualmente um verdadeiro pastiche de seus pastiches anteriores, “Historia abreviada da literatura portátil”, de 1984, quando tinha 36 anos, e “Bartleby e companhia”, de 2000, quando tinha 52 anos. Há até rumores de que Vila-Matas já se dispunha a não escrever mais quando resolveu responder, com “Ar de Dylan”, a seus críticos.
Na verdade, ele vive como muitos de seus personagens, que alardeiam intimidade ou identidade com pessoas famosas. Por exemplo, na juventude, foi morar em Paris e alugou um apartamento da escritora Marguerite Duras. Na maturidade, fundou uma sociedade que todos os anos se reúne em Dublin a 16 de junho, data em que se passa o romance “Ulisses”, de James Joyce. Só que, ao contrário de seus personagens, Vila-Matas alcançou uma bem merecida consagração.
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