7 de novembro de 2009

O QUE FOI EMBORA COM O MURO

Aqui transcrevo e traduzo o que escreveu agora, nos 20 anos da derrubada do Muro de Berlim, um chileno que era um jovem estudante em Berlim Oriental quando se deram os acontecimentos. O original em castelhano consta do blog do autor, citado ao final, mas o vi na lista de notícias argentina Reconquista Popular.

O QUE O MURO LEVOU CONSIGO
Por Manuel Guerrero Antequera

Nestes dias se comemoram 20 anos da queda do Muro de Berlim. Há um modo dominante de recordar esse acontecimento como gesta civilizatória semelhante à conquista da lua pelo Homem. Tal versão pode ser certa, mas não é toda a verdade. Pelos azares do binômio ditadura/resistência chilena, em 1989 eu me encontrava com 18 anos de idade em Berlim Oriental terminando meu quarto ano do ensino médio na Escola Secundária Immanuel Kant, do município de Lichtenberg. Um dia, nos inícios de novembro, estando com amigos num clube de literatura, por volta das dez da noite, se ouviu pelo rádio o comunicado de Günter Schabovski, em que o governo permitia - após quarenta anos - atravessar livremente para Berlim Ocidental, durante uma noite. Com meus amigos alemães nos olhamos atônitos pela notícia. Ninguém sabia muito bem o que fazer, era uma resolução insólita, fora do cotidiano. Como Alice através do espelho, massas de "Osis" começaram a ir para o “West” para conhecer em primeira mão o que durante tanto tempo havia sido demonizado em casa ou edulcorado pelos canais de televisão ocidentais ZDF e Sat 1. Já em julho centenas de alemães da RDA tinham decidido emigar para a RFA via Áustria, através da fronteira aberta pela Hungria. Em outubro eram 50 mil os que tinham dado esse passo. Multidões em massa da sociedade civil pela democratização da RDA se sucediam pelo centro de Berlim, cruzando a Alexander Platz, à beira do Palácio da República, diante da observação atenta da porta de entrada dos Jardins Suspensos da Babilônia, erguida por Nabucodonosor, que desde alguma conquista prussiana agora pendiam do Museu Pergamon às margens do Spree. Eu militava desde os 14 anos nas Juventudes Comunistas do Chile. Em fins de 1988, quando começou o movimento social alemão, solicitei que nosso Partido, na qualidade de organização revolucionária internacionalista, se tornasse parte do clamor contra o stalinismo enquistado no aparelho de Estado, clamor que era cada vez mais aberto por parte das maiorias antes silenciosas da RDA. O socialismo é democrático ou não é socialismo, nos havia ensinado em seus discursos Salvador Allende, e agora era a vez de os revolucionários acompanhar e participar dessa cidadania que exigia mais democracia em seu país, com a ajuda do contexto da Glasnost e da Perestroika de Gorbatchev. na URSS. Diante de minha apaixonada argumentação, um dirigente do Partido me respondeu laconicamente "não se meta em confusão, companheiro". O que fiz foi sair do Partido e entrar nos Antifa Gruppen, para lutar nas ruas contra os carecas (jovens fascistas) e organizar a defesa do socialismo, mas o reconquistando para as pessoas. Numa linha menos radical, mas mais propositiva e transversal, a escritora Christa Wolff compartilhava a necessidade de dar um conteúdo autenticamente democrático ao socialismo, motivo pelo qual organizou o Novo Fórum, que conseguiu, com muita eficácia em razão da ética comprovada de seus integrantes, comprovar amplos setores cidadãos a se mobilizarem pacificamente, a se constituírem em sociedade civil. A 19 de setembro de 1989 ela pediu ao governo o certificado de reconhecimento de sua associação, o que foi rejeitado sob a acusação de "inimiga do Estado". Quando cheguei a meu colégio não havia um centro de alunos eleito democraticamente. A qualidade do ensino era espetacular, também do esporte e das artes, tudo de acesso universal e gratuito para qualquer filho de morador. Mas a única organização que estava autorizada era a Juventude Livre Alemã, na qual militavam quase 100 por cento dos meus companheiros. Se você não entrasse, era muito difícil começar logo uma carreira profissional de êxito, me explicavam. A solidariedade com o Chile contra Pinochet era generosa e empenhada, mas por que não agiam para democratizar, para melhorar seu próprio país? "Não te metas em confusões", me respondiam antes de 1989 meus colegas alemães, "só conseguirás que te cortem a vaga no colégio e ficarás sem diploma". Eles não temiam tanto a agora mítica Stasi, a segurança interna do Estado, sim não acreditavam na política como capacidade coletiva de transformação social. Tinham perdido a fé em sua própria capacidade de influir sobre seu destino. A 25 de setembro de 1989, na cidade de Leipzig, milhares de pessoas decidiram realizar uma marcha todas as segundas-feiras. Em Berlim os protestos pacíficos eram cada vez mais frequente e as praças ferviam de debates. A 7 de outubro fomos convocados pela direção de nossos colégios a assistir a comemoração do 40.o aniversário da RDA. Haveria comprovação de presença. Nas beiras das ruas nos puseram com bandeirolas de papelão a saudar os hierarcas dos países socialistas do Leste que vinham dar um sinal de unidade do Pacto de Varsóvia. Recordo ter visto passar Gorbi, com seu sinal de nascença na calva - o mapa do Afeganistão, comentavam meus amigos - e Ceaucescu, que morreria fuzilado poucos meses depois por uma revolta contra ele na Romênia. À noite, diante do Palácio da República, o histórico líder da resistência antifascista alemã e chefe de Estado, Erick Honecker, fez uma arenga com a voz alquebrada pela idade avançada, à Juventude Livre Alemã, que tinha chegado com suas camisas azuis e tochas acesas. Apenas uns dias depois, a 18 de outubro, Honecker pediria demissão do cargo, pressionado pelas mobilizações sociais. A 4 de novembro, nos reunimos em meio milhão de pessoas, no Centro de Berlim, convocados pela Associação de Artistas. Christa Wolff fez um discurso de defesa do socialismo, com fortes críticas aos que abandonavam o barco indo para a RFA; a tarefa era recuperar o país para as maiorias, não fazê-lo desaparecer. A 8 de novembro o governo comunicou que haveria eleições livres e que se outorgava estatuto legal ao Novo Fórum. A esperança na mudança social se podia tocar com as mãos. Obras de teatro antes proibidas eram encenadas, o Decálogo de Kiszlovszki passava no cinema, com tradução simultânea ao vivo, voltavam artistas de esquerda dissidentes como Wolf Biermann e revolucionários como Walter Janka, antigo comunista e combatente da Guerra Civil Espanhola, davam seus testemunhos sobre o stalinismo e a necessidade de um socialismo democrático. A 9 de novembro, estando no clube de literatura que eu frequentava com meus amigos, ouvimos o comunicado oficial de Schaboski: havia permissão para ir a Berlim Ocidental. Saímos do clube depois das dez das noite. Éramos milhares de pessoas. Eu tinha visto múltiplo por ser estrangeiro, o que me permitia ir e vir entre as duas Berlins de forma contínua. Mas esse estranho privilégio meus amigos não tinha. Eu passava "para o outro lado" e lhes trazia requintados sanduíches turcos, os quebabes de Kreuzbert, livros de Nietzsche, Schopenhauer e Sartre, e discos dos Stones e Neil Young. Agora sim se podia e, com Jirka, André, Thomas e Frank, cruzamos a fronteira. Minha intenção era lhes mostrar a pobreza dissimulada no Ocidente, seus prostíbulos em que as mulheres eram tratadas como objetos, a decadência dos consumidores de drogas com suas seringas nas ruas, os desempregados vagando pedindo esmola. Eu desejava lhes mostrar as maldades do capitalismo, para que não se arrependessem de ter um país socialista, que precisava de democratização. Não obstante, meus amigos caminhavam entre as massas de Osis que tomaram pacificamente as ruas principais de West Berlin e olhavam as construções, as lojas que às onze da noite abriram extraordinariamente as portas, oferecendo produtos grátis às pessoas. Com olhos bem abertos olhavam os alemães do outro lado que também os olhavam com olhos como que fora da órbita. Não ouviam minhas pregações militantes, minhas observações radicais e sizudas sobre a estratificação social capitalista em classes, diferente da estratificação burocrática do Leste. Caminhamos quadras e quadras na noite. Os vi felizes e tristes ao mesmo tempo. Era a Alemanha também, mas não a deles, embora tampouco sentissem a RDA coo sua. Fomos ao cinema, comemos num restaurante chileno - onde havia muitos produtos que escasseavam na RDA, brindamos pela amizade e de madrugada voltamos para chegar na hora ao colégio. Às 8h30 estávamos pontualmente todos nas classes. Professores e estudantes com olheiras, todos haviam ido para o outro lado à noite. Ninguém comentava muito, havia a vontade de que a vida seguisse seu curso normal, de retomar as mobilizações, formular propostas. No entanto, já nunca mais foi a mesma coisa. O mundo tinha mudado. As certezas que durante anos haviam sido aprendida como axiomas, que davam algum tipo de tranquilidade, se haviam despedaçado sem encontrar substituição. O que viram no outro lado não era tão ruim, mas tampouco tão espetacular a ponto de se querer perder o que se tinha, mas isto já era irreversível. Notei neles uma surda desesperança, não um entusiasmo revolucionário como sonhava Kant que viesse a ser a experiência moderna e ilustrada da liberdade e da autonomia. "Sê livre, usa a razão", clamava o filósofo de K"onigsberg, entusiasta do componente anímico da revolução francesa. Mas aqui acontecia o contrário. Algo havia no ar que os alemães do Leste notavam, algo que escapava a seu controle. Um silencioso desencanto com tudo, com o próprio e com o dos outrosAinda a RDA não tinha desaparecido como país mas já se vivia a mudança; se observava a canalização do processo democratizador em outra coisa estranha que não ocorria na rua, na praça, no espaço público, mas atrás de cortinas de outra magnitude geopolítica. O processo de anexação tinha começado. Anos depois do 9 de novembro meu amigo Thomas se suicido. Sua irmã também. E meu diretor de colégio também. E vários mais. Não é que não celebrassem a democracia, não é que quisessem voltar ao que havia. O mundo para eles mudou radicalmente, de ter conseguido constituir-se em poucos meses em atores sociais de uma possível nova história coletiva, passaram a ser cidadãos de segunda categoria de uma sociedade e sistema econômico preexistentes, aos quais foram entregues de bandeja sob o nome de reunificação alemã por meio das hábeis mãos do chanceler Kohl e do camarada Gorbatchev. Na ex RDA chegou o momento de desaprender coletiva e individualmente para aprender a continuar vivendo de uma maneira não escolhida livremente. Há uma memória vitoriosa do 9 de novembro de 1989. Quem escreve a história gosta de impor marcos temporais e essa data simboliza a queda da cortina de ferro e o fim do muro de Berlim serve de alegoria do que viria com o desaparecimento de todo o bloco soviético. A conclusão do breve século XX, como chama Hobsbawm, ou diretamente o fim da história, como bradou apressado Fukuyama pelo triunfo do livre mercado em escala planetária. No entanto, isso não é tudo. Dizem que é muito provável que Neil Armstrong jamais pisou na lua e que toda aquela viagem não foi mais do que uma montagem televisiva do genial Kubrick. Neste outro caso o muro caiu de verdade, não há dúvida, mas não foi a única coisa que ali foi derrubada. E talvez isso foi o principal: a destruição tira o que havia, mas por si mesma não gera o novo. Essa abertura ao inédito, a conquista coletiva de uma sociedade democrática e solidária que não é o "capitalismo com face humana", é o que o muro também levou consigo. Mas a memória de ter vivido a experiência libertária não se apagará e sem dúvida haverá novas tentativas, por mais que se ergam muros no caminho. Persistir na tentativa, abertos com memória ao novo, talvez nisso consista ser humanos.
http://manuelguerrero.blogspot.com/

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