14 de fevereiro de 2010

Suicídio, tema de ficções de autor catalão

Há pouco tempo o Diário do Comércio, de São Paulo, me encomendou a seguinte resenha:

“Suicídios exemplares”, livro insólito de contos insólitos

O título desse livro de contos do autor catalão Enrique Vila-Matas já é intrigante: “Suicídios exemplares”, lançado no original em 1991 (significativamente, no ano de um dos suicídios mais exemplares de toda a história da humanidade, o da União Soviética), agora publicado no Brasil pela Cosac-Naify. A idéia central é sem dúvida de insólita originalidade: uma coletânea de contos sobre o problema do suicídio, seja como coisa que passa pela cabeça de cada personagem, seja como tentativa, seja como consumação. E o mais estranho é que, apesar da temática comum, cada conto é, de modo surpreendente, completamente diferente do outro.
Mas os contos têm uma grande característica em comum: todos eles têm um frescor juvenil, quase diríamos infantojuvenil no modo de escrever e de ver as coisas, apesar de o escritor ter 43 anos de idade quando lançou o livro. Ele nasceu em 1948 e, aos 20 anos, se autoexilou da Espanha ainda sob o regime ditatorial do generalíssimo Francisco Franco e foi morar na efervescente Paris de 1968, abrigado por ninguém menos do que a famosa escritora Marguerite Duras. Embora o livro não recorra a nada de sobrenatural, suas diferentes atmosferas são como as de um sonho, como as de um conto de fadas; suas tramas são articuladas de modo artificiosamente ingênuo – é como se, às vezes, uma criança, e, outras vezes, um adolescente estivesse escrevendo.
O resultado é uma série de pinceladas insólitas, centradas, não no desespero de quem pensa em suicidar-se, mas no colorido de suas vidas, seja a do espanhol que passeia por Lisboa e aprende a palavra “saudade”, que, como sabemos, só existe em português, enquanto relembra a história que não chegou a ouvir dos lábios de uma pedinte em sua infância que ficou para trás, seja a de uma alemã funcionária de um museu em Düsseldorf, não muito frustrada porque seu marido e filhos não se lembram do seu dia de aniversário – pelo contrário, está quase agradecida por isso, que lhe permite sair para passear com quem quiser –, seja a de um jogador de futebol espanhol que termina a carreira na Argentina e, com uma jovem argentina que está para morrer, passeia por um cemitério na Catalunha.
Há também, como exemplo de trama com frescor juvenil, a história de um cidadão que finge ser estrangeiro em seu próprio país, uma ilha imaginária, e que escreve em segredo romances em que critica com olhos zombeteiros de estrangeiro a vida de seus, na verdade, compatriotas. O fato de ser uma ilha imaginária chama a atenção no livro, pois, na maioria dos contos, o autor, apesar de já quarentão na época da obra, cai numa célebre armadilha dos escritores estreantes: situa as ações em lugares reais que, enganosamente, julga familiares a todos os seus leitores e menciona obras de arte que julga bem conhecidas também pelos leitores. Mas, quem não conhece os lugares por onde os personagens passam – uma ladeira em Lisboa, um bar em Düsseldorf, etc. – não consegue captar todo o clima da cena, do mesmo modo que as obras de arte apenas mencionadas, e não descritas nem avaliadas, não despertam nos leitores que as desconhecem as evocações que o autor pretendeu transmitir.
Assim, o lugar mais bem evocado do livro é justamente o país que não existe na realidade e que foi inteiramente imaginado por Vila-Matas, com esse conto específico, como obra de arte, não padecendo do problema de depender de referências externas a si próprio para ser plenamente aproveitado. Uma obra de arte clássica, como se sabe, tem de ser inteiramente autorreferente, passível de ser totalmente compreendida mesmo por uma pessoa de cultura completamente diferente da do seu criador.
Também não aspiram à forma clássica os contos do autor. Como teorizaram e praticaram contistas como o americano Edgar Allan Poe e o russo Anton Tchekhov, cada detalhe, cada palavra do conto deve ser como que inexorável, não deve faltar nem sobrar nada, tudo deve desde o início ir preparando o desenlace. Disse Tchekhov que, se uma espingarda aparece ornamentando uma parede durante o conto, antes do final ela tem que disparar. Nesse livro de contos sobre o suicídio, há inúmeros detalhes que têm a requintada superfluidade dos presentes de luxo, além do que há “espingardas que não disparam”, ou seja, falta, por exemplo, a história que a pedinte contava. Mas nossos tempos não são clássicos e esses contos sobre a gratuidade dos suicídios são de beleza bem acima da altura da vida que levamos – de modo que vale, e muito, a pena ler esse livro. Pois, apesar de ser um livro sobre suicídios, ele é exemplar ao nos levar para diferentes caminhos da salvação.

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