7 de março de 2010

Cerveja, a bebida do verão em artigo para o Diário de S. Paulo

Recentemente o Diário de S. Paulo me encomendou o seguinte artigo:

Cerveja, a bebida do verão

A cerveja, para os brasileiros, é a bebida do ano inteiro, mas seu grande reinado é durante o verão, como lembrou a recente grita pela escassez de chope em São Paulo. Mas você sabe o que está tomando quando bebe cerveja?
A cerveja pode ser definida como a bebida obtida a partir do malte a que se acrescenta água, ou mais exatamente como a bebida obtida a partir da fermentação do malte, nome que se dá à cevada germinada, isto é, já brotada; além da água, à bebida se acrescenta lúpulo, folhagem de uma erva proveniente de uma trepadeira. Esta é a clássica cerveja consumida, em diferentes formas e preparos, em massa no mundo inteiro. Mas a cerveja pode ser obtida de qualquer cereal germinado, como o trigo (caso da Bohemia Weiss), o milho, ou centeio (caso do kwass da Europa Oriental) – ou o arroz (caso do saquê), o sorgo na África. E o lúpulo só foi acrescentado já na passagem da Antiguidade para a Alta Idade Média, já na Europa, pois antes a cerveja era feita só com malte, e não reconheceríamos o gosto da cerveja tomada pelos antigos egípcios – os operários que construíram as pirâmides eram alimentados com pão, cebola e cerveja. Poucos sabem que a cerveja é parenta do uísque, produzido a partir da destilação de diferentes tipos de cervejas.
A cerveja comum normalmente consumida no Brasil, como na Europa Continental e nos Estados Unidos, é feita a partir da chamada baixa fermentação e armazenada durante longo tempo antes de ser consumida. A baixa fermentação ocorre quando, no momento em que a fermentação é completada, o fermento cai para o fundo do receptáculo de produção. O mestre cervejeiro e gerente corporativo de desenvolvimento de cervejas da AmBev, Luciano Horn, explica que é o tipo de fermento escolhido que determina se a cerveja é de baixa ou alta fermentação, sendo que o de baixa fermentação passou a ser usado mais recentemente, na milenar história da cerveja, do que o de alta.
Quando a bebida de baixa fermentação é vendida ainda nova, sem ser armazenada, e posta em barril assim que ficou pronta, é chamada de chope. Quando fica armazenada durante longo período, é chamada Lager (do verbo alemão lagern, que significa “armazenar”) e é desse tipo, mais exatamente do subtipo Pilsen, desenvolvido a partir de 1839 nessa cidade hoje na República Tcheca e grafada Plzem em tcheco, a cerveja clara comum, a mais consumida, tipo Brahma, Antarctica, Kaiser, Skol, Schincariol e tantas outras. Seu teor alcoólico fica entre 3 por cento e cinco por cento. A Bock, fabricada originalmente em Einbeck, na Alemanha, de onde recebeu o nome, é uma Lager mais escura, assim como a München, de Munique. Horn explica que as cores diferentes se devem à maior ou menor proporção de malte torrado ao lado do malte cru, ou claro: quanto mais malte torrado, mais escura a cerveja. A Eisbock, ou Bock de gelo em alemão, é conservada abaixo de zero grau; congela em parte, a parte congelada é retirada e a cerveja fica com 13 por cento de álcool. A Eisbock, que praticamente não é consumida no Brasil, não deve ser confundida com a Antarctica Sub Zero, que só é mais gelada para garantir maior refrescância.
No caso da alta fermentação, o tipo de fermento utilizado, quando a fermentação está completada, sobe à superfície no recipiente de produção e o teor alcoólico sobe para entre 4 por cento e 6,5 por cento. É o caso das cervejas Stout, como a Caracu, mais comuns na Inglaterra, entre elas a Porter – esta última chegou até poucas décadas a ter consumo significativo no Brasil, caso da saudosa Brahma Porter. Era preciso ter todo cuidado para, ao colocar a Porter no copo, não ficar só com espuma: quem não era veterano dessa cerveja preferia pôr no copo uma batata cozida ou uma fatia de queijo para absorver a espuma, mas essa manobra não era bem vista pelos bebedores veteranos. Em suma, para tirar a Porter da garrafa, o bom bebedor precisava ter mão tão boa quanto a de um bom chopeiro. O gosto do lúpulo fica mais acentuado na cerveja de alta fermentação, ou seja, ainda mais amargo do que na de baixa fermentação. Enquanto as cervejas de baixa fermentação são normalmente pasteurizadas, com exceção do chope, algumas de alta fermentação não são, como a antiga Porter. Existe uma cerveja praticamente não fermentada, de teor alcoólico abaixo de 1 por cento: é a Maltzbier, ou cerveja de malte em alemão, em que a fermentação é praticamente abortada pela introdução do fermento abaixo de zero grau; acrescenta-se açúcar e essa cerveja preta, doce e pouco alcoólica era preferida tradicionalmente pelas mulheres, até que estas passaram a beber do mesmo modo que os homens. Horn relaciona os tipos mais comuns de cerveja no Brasil: Pilsen, preta, de trigo, Abadia (como as dos monges trapistas belgas), Stout e Lambic, esta última misturada com frutas, como a framboesa. O mestre cervejeiro da AmBev esclarece que o nome Premium é um nome fantasia e não tem nenhum significado técnico. Mas Juliana Damigue, assessora de imprensa da AmBev, afirma: “O mercado de cervejas é dividido em ‘mainstream’ e ‘premium’. As cervejas ‘mainstream’ são as mais populares como Skol, Brahma e Antarctica. As chamadas Premium são as marcas produzidas com ingredientes diferenciados e embalagens mais elaboradas, por exemplo, como é o caso de marcas como Bohemia e Stella Artois.”
A cerveja é a bebida alcoólica mais consumida do mundo, e na verdade, entre todas as bebidas, só perde para a água e o chá, sendo mais consumida até do que o café... ou o leite!. É também a bebida alcoólica mais antiga produzida por seres humanos. Há provas de seu consumo na Mesopotâmia há mais de 8 mil anos, mas provavelmente ela foi produzida ainda antes, desde a vulgarização dos cereais na alimentação humana com a Revolução Agrícola de 10 mil anos atrás. Provavelmente foi, de início, feita a partir de cereais amassados; a massa entrava espontaneamente em fermentação; no Egito, tudo indica que ela era feita a partir de pão levedado (isto é, fermentado), lembrando-se que o pão é a massa de cereais assada. Mas logo se aprendeu a fazer a cerveja a partir de grãos de cereais já germinados, de sua massa, ou de seu pão. Essas cervejas eram de alta fermentação, um tanto azedas.
Nas tabuinhas com textos cuineformes da epopéia “Gilgamesh”, de 3.500 anos antes de Cristo, na Suméria, se descrevem todos os passos da produção de cerveja, já elaborada a partir da cevada e aromatizada com outros cereais ou com especiarias. A epopéia conta como um ser animalesco, Enkidu, se tornou um ser humano assim que tomou sua primeira cerveja. Assim como hoje é considerada de mais qualidade a cerveja com mais lúpulo, naquele tempo a mais considerada era a cerveja com mais trigo. Havia uma deusa suméria da cerveja, Ninkasi, e a imagem de um filtro era o distintivo das cervejeiras profissionais (era uma profissão feminina) por volta de 1.800 anos antes de Cristo, tendo o filtro tornado dispensáveis os canudos antes necessários para não ingerir as partículas sólidas da mistura – agora se podia beber diretamente da taça. As cervejas sumérias tinham a consistência de xarope. Um provérbio sumério dizia; “Quem não conhece cerveja, não sabe o que é bom. A cerveja torna o lar agradável”. O Código de Hamurábi, o mais antigo código legal conhecido, decretado por volta de 1750 AC por esse rei babilônio, contém regras rigorosas sobre a produção e o consumo de cerveja; em particular, havia regras para proteger o consumidor das contrafações de cerveja promovidas pelos taberneiros..
No Egito a cerveja chegava a ser mais consumida do que a água, por esta causar doenças, por estar freqüentemente contaminada. Interessante é notar como, do mesmo modo que havia até recentemente uma rivalidade entre os franceses tomadores de vinho e os ingleses tomadores de cerveja, na Antiguidade havia uma rivalidade entre os gregos tomadores de vinho e os egípcios tomadores de cerveja. Os egípcios não diziam “Bom dia”, como nós, ou “A paz seja convosco”, como judeus e árabes – cumprimentavam dizendo “Pão e cerveja”. Havia um oficial nomeado pelo faraó como “controlador das cervejeiras” (a profissão continuava sendo feminina, sendo o único homem o controlador). Além de exportada para portos no Mediterrâneo, a cerveja egípcia era uma oferenda usada em rituais em honra de várias divindades.
Do Egito, a cerveja foi levada pelos comerciantes gregos ao Norte e ao Leste do Mediterrâneo, e dessas duas regiões chegou à Ibéria, Gália e Germânia (hoje Portugal e Espanha, França e Alemanha), e daí para a Grã-Bretanha e os países nórdicos, e para o Leste europeu. Era considerada uma “bebida bárbara” pelos gregos da própria Grécia e pelos romanos, que preferiam o vinho, como atestam os livros dos pesquisadores Plínio e Tácito. A cerveja era preferida pelos germânicos, celtas, trácios e citas; mesmo assim tavernas romanas serviam cerveja. O nome “cerveja” provém do latim cerevisia, que por sua vez vem do celta. Inversamente, os nomes da cerveja em inglês, alemão, francês e italiano, beer, bier, bière, birra, vêm do celta bier, que por sua vez vem do latim bibere, beber.
Da Antiguidade, a produção artesanal de cerveja passou para a Idade Média; em 719, a Lei dos Alemães, promulgada pelos francos, regulou a produção doméstica de cerveja em todas as regiões germânicas. Cervejas dessa época sobrevivem até hoje no Norte da Europa e no Leste europeu, como o kvass – cerveja de centeio. Foram surgindo as cervejarias comerciais; cada taverna era acoplada a uma unidade produtora, especialmente em mosteiros. No ano 1000, quarenta casas do mosteiro de St. Gallen, na Suíça, produziam e vendiam cerveja; na Alemanha havia mais de 400 mosteiros-cervejarias – e na Bélgica de hoje, como então, os monges trapistas continuam produzindo sua famosa cerveja.
A partir do século 12, quando ocorre a primeira menção por escrito ao acrescentamento de lúpulo, as cidades alemãs que formaram a Liga Hanseática passaram a emitir licenças, com altos impostos, para particulares produzirem cerveja e a exportarem. Data de então a tradição da cerveja alemã. O lúpulo foi adotado pela Holanda por volta de 1400 e na Inglaterra por volta de 1600. A erva demorou a ser aceita pelos bebedores, por dar um certo amargor à cerveja, mas permitia sua conservação por mais tempo, o que facilitava a sua difusão pelos comerciantes e exportadores. (Logo o próprio gosto do lúpulo passou a ser mais aceito e a cerveja Lager com mais lúpulo, tipo Pilsen, passou a ser a mais apreciada).
Em 1420, na Bavária, os monges introduziram a produção por baixa fermentação e a cerveja Lager; em 1516 essa região aprovou a Lei da Pureza, que só permitia a fabricação de cerveja com malte de cevada e lúpulo, em 1551 nova lei bávara só permitia a baixa fermentação, mas essa segunda lei só no fim do século 19 se estendeu para o Norte da Alemanha. Da Alemanha, o gosto pela Lager, em particular pela Pilsen, se espalhou pelo mundo, com a notável exceção das áreas de influência britânica – a alta fermentação continua predominando na Inglaterra -, como a Rússia e a Índia, onde passaram a predominar a adocicada Stout e a forte Porter.
Inventados ao longo do século 18, o hidrômetro, o sacarômetro, o termômetro e a máquina a vapor se combinaram para tornar possível a industrialização em larga escala da cerveja, surgindo ao longo do século 19 as fábricas mais semelhantes às que conhecemos hoje. A partir dos anos 1830, com a descoberta das enzimas, começaram os aperfeiçoamentos bioquímicos no conhecimento do processo de fermentação e da produção de cerveja – e é de então que datam muitas das grandes indústrias cervejeiras de hoje, como a Brahma e a Antarctica. No fim do século 19, a Carlsberg da Dinamarca introduziu o fermento produzido em laboratório; antes cada fermentação era obtida pelo acrescentamento de um fermento anterior, como nas coalhadas caseiras. A grande novidade do século 20 foi a difusão, a partir dos Estados Unidos, da cerveja bem gelada.
A cerveja sempre havia sido considerada um bom alimento, e talvez fosse, mas hoje, segundo muitos estudos, tem valor apenas calórico, pois os modernos filtros eliminam a maior parte das vitaminas e sais minerais que ela continha nos tempos em que Marx lamentou a substituição do hábito da cerveja pelo hábito do gim entre os proletários ingleses. Desde então a cerveja não é mais considerada, em muitos estudos, um bom nutriente. Por isso, sua ingestão deve ser acompanhada de alimentos ricos em fibras e proteínas. Mas Horn não concorda com isso: “A cerveja sempre foi considerada um bom alimento, ainda hoje, por ser elaborada com malte rico em proteínas e sais minerais e o fermento ricos em vitaminas principalmente do complexo B. Os filtros não retiram as vitaminas e sais”. A Malzbier, como vimos, tem bastante açúcar.
Tomada em grande quantidade durante um grande período de tempo, a cerveja tem as mesmas consequências maléficas que qualquer outra bebida alcoólica. Sua única vantagem é que ela “enche” o estômago mais rapidamente do que o vinho ou os destilados, e assim o típico bebedor de cerveja acaba tendo menos álcool no sangue comparado com o típico bebedor de vinho ou de destilados. Esse “enchimento” do estômago, aliás, é uma das origens da lenda da “barriguinha da cerveja”, provocada muito mais pelos salgadinhos que a acompanham. Há estudos que indicam que o consumo de 100 ou 200 gramas de cerveja por semana pode ter efeitos benéficos, em especial sobre o sistema circulatório, mas isso não dá um copo por semana.


A cerveja só chegou ao Brasil em 1808, com a vinda da Família Real, pois antes os interesses comerciais portugueses não admitiam concorrência ao vinho. As preferências tarifárias concedidas à Inglaterra levaram o País a se tornar importador de cerveja inglesa, ou seja, de alta fermentação; cervejas de outras nações eram também importadas para o Brasil por comerciantes ingleses. O povão tomava algo parecido com cerveja, a gengibirra, produzida a partir da fermentação do gengibre, às vezes misturado com milho.
Por volta de 1830 os imigrantes alemães introduzem no Brasil a produção doméstica de cerveja, mas, como vinham do Norte e do Oeste da Alemanha, a cerveja era de alta fermentação, como a inglesa; na verdade, a rolha tinha de ser amarrada com barbante, para não estourar, daí surgindo a expressão “cerveja marca barbante”, comparada desfavoravelmente à inglesa importada. A partir de 1850 surgiram as primeiras produções comerciais, por iniciativa de imigrantes, com o trabalho tanto de escravos como de empregados livres. A partir de 1870 passa a predominar, no mercado brasileiro, a cerveja de baixa fermentação, em parte produzida no País e na maior parte importada do recém-instituído Império Alemão. No início do século 20 cessa a importação em grande escala, substituída pela cerveja nacional.
Grandes fábricas vão paulatinamente concentrando a produção, especialmente a Brahma e a Antarctica, mas na segunda metade do século 20, enquanto essas duas se fundiam na Ambev e depois na InBev, surgiram outras marcas significativas, como a Kaiser, a Schincariol e a Skol – e, nos fins do século passado, uma infinidade de fábricas pequenas, grande parte delas microcervejarias que só vendem para fora o excedente de sua produção não vendido no seu próprio estabelecimento comercial. A variedade é tanta que hoje existem no País lojas de diferentes tipos de cerveja, até mesmo com sessões de degustação.
Nas últimas décadas, surgiu a cerveja sem álcool – pelo controle da fermentação – (como a Kronenbier, a a Schincariol sem álcool), nome dado à cerveja com menos de 0,5 por cento de álcool, e, nos últimos anos, a cerveja totalmente sem álcool, como a Líber, para quem está preocupado com o alcoolismo, ou com a dieta.
Um brinde à cerveja!

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