9 de abril de 2013

De Maria Rita Kehl, sobre "Quatro-Olhos", romance de 1976 de Renato Pompeu

'Os dois livros de Quatro Olhos Maria Rita Kehl A dedicatória do autor na primeira folha de meu exemplar de Quatro Olhos é de 1977, ano em que conheci Renato Pompeu na redação da revista Veja. Recomecei a leitura, 35 anos depois, temerosa de que o livro pudesse ter envelhecido. Nada disso: a passagem do tempo só fez ampliar o alcance, literário e crítico, do primeiro romance de Pompeu. Um livro dentro de outro livro: assim o autor construiu sua narrativa estilhaçada, a partir da tentativa do personagem-narrador de recuperar os originais do texto que teria escrito ao longo de treze anos, entre a adolescência e a juventude, e que perdera “em circunstâncias que não me convém deixar esclarecidas”. Por conta da perda irrecuperável – pode-se reescrever uma história, mas dificilmente se reproduz uma página no estilo em que fora escrita – a narrativa vai e volta entre dois tempos passados. Há o passado mais remoto em que o livro foi escrito, desde a adolescência do narrador até o período em que viveu à sombra da esposa, grã-fina e militante, até que ela desaparecesse a fugir da polícia e ele perdesse, junto com o pouco juízo que tinha, os originais do tal livro. Era uma época em que se perdiam originais em papel, não em pen-drive. Esse período é todo atravessado por trechos do livro perdido, que o narrador tenta recuperar de memória. A julgar pelos trechos recordados pelo narrador, o rascunho perdido poderia ter realizado o sonho flaubertiano de escrever “um livro sobre nada”. O que pode parecer no mínimo extemporâneo, dada a urgência que a época impunha de se escrever duras denúncias da situação política. A fina ironia de Pompeu deixa o leitor confuso. Seria o personagem-narrador, autor do livro perdido, um típico “alienado” que preferia ignorar os acontecimentos que traumatizaram o país na década de 1970? Pelo menos era assim que o julgavam a esposa e seus amigos engajados. A leitura de Quatro Olhos revela, aos poucos e com rara sensibilidade, o modo como o autor tece a trama sutil entre a esfera do poder (pouco compreensível para o narrador) e os acontecimentos mais miúdos da vida cotidiana. Enquanto o livro perdido parecia querer recuperar fragmentos de percepções e sensações não contaminadas pela barbárie política – uma réstia de sol num pedaço de muro, uma flor no canteiro central da avenida, grãos de areia esquecidos num chinelo de praia – o segundo livro relata, como que à revelia do narrador, a brutalidade que contaminou a vida cotidiana, desfez o sentido de tudo e acabou por enlouquecer nosso anti-herói. É no hospício que ele encontra, enfim, um pouco de sanidade, de contato humano e de solidariedade espontânea, em contraposição ao sem sentido da vida lá fora. Depois da alta, ao descobrir que a realidade brasileira já lhe roubara duas mulheres, o narrador decide o que deve fazer: recomeçar a escrever o livro. O que promove um giro completo na mente do leitor: será este Quatro olhos que ele tem em mãos aquele livro que seu personagem, ao final, pretende recuperar?

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