26 de junho de 2010

Ganso, dos Santos, e a cidadania

Escrevi recentemente para a Reviuta do Brasil o seguinte artingo:



A atitude de Ganso, jogador do Santos, e o conceito de cidadania

Renato Pompeu

Quando o jogador Paulo Henrique, o Ganso, do Santos, se recusou a ser substituído durante a final do Campeonato Paulista de Futebol, ficou claro para todos que ele não estava defendendo seus próprios interesses, mas acima de tudo os interesses do time. Era visível que Ganso era o principal articulador da tática de evitar o gol adversário que tiraria o título do Santos e que o técnico do time estava completamente fora da realidade.
Mas, se a atitude de Ganso ficou nítida no plano puramente futebolístico, uma outra sua dimensão, relacionada com o conceito e a prática da cidadania, foi bem menos destacada pela mídia. Essa postura lembra as atitudes adotadas por grandes jogadores do passado, em situações talvez ainda mais agudas.
Em 1958, na Copa da Suécia, o técnico Vicente Feola tinha escalado Dida pela meia-esquerda e Joel pela ponta-direita. Com todo o respeito, assim como fez Ganso, os jogadores Didi e Newton Santos e outros ponderaram a Feola que era melhor escalar Pelé e Garrincha. Feola acabou convencido e o resultado foi que o Brasil se tornou campeão mundial pela primeira vez e Pelé e Garrincha se consagraram como os melhores jogadores da Copa, então ainda mais conhecida no País como Taça do Mundo.
Em 1970, na primeira Copa do México, o técnico Zagallo julgava inviável escalar Pelé e Tostão juntos no ataque, por terem segundo o técnico esquemas de jogo incompatíveis entre si. Ainda de acordo com Zagallo, embora Pelé e Tostão fossem grandes jogadores, se jogassem juntos, um atrapalharia o outro. Mas Pelé comandou um grupo de jogadores exigindo jogar junto com Tostão e Zagallo acabou se convencendo. Pelé e Tostão jogaram juntos e o Brasil conquistou o tricampeonato.
Há outro ponto em comum entre todos esses jogadores e Ganso, além do fato de que todos se consagraram pela alta técnica e pela capacidade tática de articular jogadas criativas em momentos decisivos, liderando os companheiros e fazendo-os darem o melhor de si. É que, contrariamente aos jogadores das mais recentes gerações antes da geração de Ganso, todos eles – Didi, Newton Santos, Pelé, sem contar Garrincha e Tostão – foram formados por uma escola pública que se dedicava mais a formar cidadãos no pleno sentido da palavra do que a ensinar as chamadas “coisas práticas”.
Essa escola pública aberta e democrática seguia os princípios da Constituição de 1946, que consagrou não só a democracia mais plena, como também ajudou a fazer avançar um tanto mais a justiça social.
Cidadãos como Didi, Newton Santos e Pelé, além de Tostão e Garrincha, se tornaram portadores de valores de uma cidadania altiva, orgulhosa e consciente de seus deveres e direitos. Capazes de chamar a atenção de um superior, quando o julgassem equivocado. Em seguida a essas gerações, vieram gerações de jogadores formados segundo a escola pública eminentemente “prática” e autoritária característica do regime militar. Aprenderam a ser submissos às chefias, e a só as combater por vias tortas e clandestinas, com astúcia e não com dignidade.
No entanto, Paulo Henrique Ganso foi inteiramente formado na escola pública democrática e no ambiente de vida em geral mais democrático que surgiram a partir do fim do regime militar e da entrada em vigência da Constituição de 1988 (notando-se que essas características foram se desenvolvendo com o tempo e só desabrocharam plenamente anos depois do fim do regime autoritário). Ganso sabe que tem deveres, mas sabe também que tem direitos. Como mostrou também ao criticar em público as argumentações do técnico Dunga para não convocá-lo entre os 23 previstos para realmente irem à Copa da África do Sul, Ganso tem aparecido como um cidadão articulado e honrado.
Um cidadão exemplar.
Faça-se um contraste com o próprio Dunga. Afinal, Dunga foi ou não foi sempre submisso aos de cima e autoritário com os de baixo? Afinal, Dunga declarou ou não que “só quem viveu o regime militar” e “só quem viveu a escravidão” é que pode falar do regime militar e da escravidão? Isso é o mesmo que dizer que ninguém tem legitimidade para criticar a escravidão, e que os jovens não têm legitimidade para criticar o regime militar.
Em outras palavras, dizer essas coisas é o mesmo que dizer que só torturadores e torturados é que podem falar sobre a tortura. Será que Dunga realmente disse tudo isso?

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