8 de fevereiro de 2011

Inventário colorido

Há alguns meses o Diário do Comércio de São Paulo me encomendou a seguinte resenha:

Os contos coloridos


de Neiva Pitta Kadota



Renato Pompeu



Se “O silêncio não é azul”, como diz o título desse livro de contos de Neiva Pitta Kadota, professora de Literatura na Fundação Armando Álvares Penteado, a famosa e requintada Faap, livro publicado pela LCTE Editora, não há dúvida de que as narrativas nele contidas são cheias de cores cintilantes. E isso não apenas nas descrições enlevadas de ruas e ambientes, embora às vezes desolados. Mas principalmente a partir do brilho emanado do calor humano e das nuanças psicológicas sutis que povoam os contos. Isso ao lado das inusitadas mudanças de tom, quando o final surpreendente de cada trama transtorna o patamar de emoções a que nos estávamos acostumando.

A autora usa com mestria o recurso de ir criando uma expectativa em que o leitor vê crescer em sua mente a certeza absoluta de que o enredo vai seguir um determinado caminho, insinuado por pequenas pistas que ela vai deixando sem alarde, para em seguida, num golpe final que causa um frisson ao mesmo tempo intenso e delicado, mudar totalmente o panorama de significados.

Seja nos atemorizando com o que pode acontecer quando uma menina inocente vai desavisadamente passear com seu cão num bairro que conhece pouco, ou quando uma mulher toma conta de sua mãe doente – situação que parece aconchegante mas que pode se tornar dramática -, ou ainda quando um marido é humilhado pela esposa e pela filha, Neiva Pitta Kadota sempre nos apresenta um universo ameno e tranquilo que de repente se.torna angustiante, até o desenlace pelo qual ansiávamos se vir deliciosamente frustrado.

Outras histórias começam também com um cotidiano “normal”, como o do homem que está na expectativa de uma consulta médica e que pega um recorte de jornal com uma entrevista antiga de um amigo do falecido filósofo francês Michel Foucault, ou o da empregadinha que tosse enquanto varre o terraço, ou o da mulher que, da janela de seu apartamento, contempla à noite os pontos luminosos nos prédios que avista, luminosidades indicativas de que as pessoas estão assistindo a uma telenovela. Mas logo evoluem para um pesadelo que tem um final que, se nem sempre é desolador, desperta invariavelmente uma emoção de solidariedade com o sofrimento humano.

Às vezes, é um encontro numa livraria que desperta esperanças e devaneios, às vezes é a cor de um vestido que aquece o coração e faz sentir um prelúdio de aquecimento da pele. Também acontece de uma mulher escrever o seu primeiro livro, desconfiar que seu amigo e confidente literário não vai gostar dele – e surpreender-se, como nós, com o que acontece depois que entrega a ele a sua obra. E mais: uma outra mulher, preocupada com as rasteiras despesas do cotidiano, fica contente por poder contar com os préstimos de uma vizinha próspera, até que enxerga o que não quer ver.

Há um casal de amantes que anseia por uma noite de amor, interrompida porém por batidas na porta. Outro conto explora a melancolia do “bullying” nas escolas, o sentimento de impotência que o bulir dos outros engendra, a ânsia de onipotência que se segue, para responder aos estragos no ego. E ainda outro conto explora o cotidiano repetitivo da vida “na firma”, cotidiano que pode se tornar literalmente infernal.

O retorno à pequena cidade natal, ou o vasculhar de uns guardados antigos, também revelam que, por trás de lembranças cálidas, pode haver segredos terríveis. As tristes ilusões da velhice também são tema da paleta de palavras de Neiva Pitta Kadota. Outro tema é o cotidiano ao mesmo tempo cinzento e rubro de um pronto-socorro da rede pública de saúde.

Um casamento em crise parece um beco sem saída. Um amor encruado de escritório só irrompe quando é tarde demais. Neiva Pitta Kadota faz um inventário colorido das impossibilidades e, ao final, o silêncio de repente se torna azul.

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