4 de março de 2011

Crime e liberdade de ir e vir

Recentemente o Diário de S. Paulo me encomendou o seguinte artigo:

Mobilidade geográfica,


um fator na criminalidade



Renato Pompeu



Até que ponto o fato de, no Brasil, as pessoas poderem se movimentar livremente pelo País todo, sem precisar prestar contas a ninguém – situação a que os juristas chamam de “livre circulação das pessoas” e os cientistas sociais chamam de “mobilidade geográfica” –, tem algo a ver com o alto índice de criminalidade nas cidades brasileiras? Em seu livro clássico “Homens livres na sociedade escravocrata”, dos anos 1960, a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, ao descrever a situação dos brasileiros na Colônia e no Império que não eram nem senhores de escravos, nem escravos, chamou a atenção para a mobilidade geográfica como um fator no alto nível de violência nessas camadas sociais, pois, sendo livres, essas pessoas poderiam praticar violências e se refugiar em outra região, sem que pudessem ser localizadas e punidas.

Será que isso é válido hoje? Afinal, em países como a Alemanha e a Itália, por exemplo, as pessoas, quando se mudam, têm de registrar o novo endereço – e o antigo – junto às autoridades policiais, e, na Grã-Bretanha, junto às autoridades de saúde, tendo porém a polícia britânica acesso a esses dados. Assim, nesses países, a Polícia sempre sabe quem mora onde, o que não é o caso do Brasil.

“Sem dúvida, a mobilidade geográfica é um fator facilitador, por exemplo, do crime organizado”, diz o sociólogo Sérgio Adorno, professor na Universidade de São Paulo e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A “divisão do trabalho” e a “subcontratação de serviços”, imprescindíveis para as operações do crime organizado, seriam impensáveis sem a mobilidade geográfica, afirma. “Os assaltos a banco são feitos por encomenda a grupos setorizados extremamente móveis, com um setor encarregado da observação da agência a ser assaltada, outro setor com a missão de vigiar a operação, e assim por diante”, acrescenta.

Uma quadrilha que pratica um assalto a banco no Recife pode na verdade vir do Sudeste e, em seguida à “operação”, voltar para o Sudeste. “As mortes por aluguel, nos grandes centros urbanos, são facilitadas pela rápida circulação dos criminosos em motos”, explica Adorno. Mas o sociólogo esclarece que a mobilidade geográfica não é uma “causa” da criminalidade ou da violência, sim é um “fator facilitador”.

Adorno também não acredita que o controle de quem mora onde pela Polícia seja um fator de contenção da criminalidade. “Na Alemanha, as comunidades são muito regionalizadas e a presença de estranhos já desperta suspeita. São os próprios moradores que controlam quem mora onde. Nos Estados Unidos, também, os vizinhos se vigiam uns aos outros. Mas, em cidades como São Paulo, ou Campinas ou Ribeirão Preto, ninguém se preocupa se o seu vizinho acaba de mudar”.

A mobilidade geográfica também é um fator no roubo de cargas. A proliferação de estradas com trânsito intenso permite que os ladrões de carga nem sejam surpreendidos no ato, nem perseguidos depois dele. Adorno chama a atenção para a facilitação aos crimes proporcionada pela introdução cada vez mais frequente de veículos cada vez mais velozes: “Dirigindo uma moto, o criminoso interpela a vítima, atira e foge, não deixa rastros, nem testemunhas, sendo particularmente difícil, nesse caso, identificar as placas”.

Mas, se a mobilidade geográfica facilita os crimes, ela não os explica, diz Adorno. “A Europa tem grande mobilidade geográfica, mas não tem o padrão de criminalidade que existe aqui no Brasil”, acrescenta. Mais importante, para a explicação dos crimes, são as diferenças entre as histórias das Polícias dos diferentes países. “Nos países adiantados, as Polícias são profissionalizadas, de um lado, e controladas externamente, de outro. A população respeita a Polícia e respeita as leis, pois sabe que a Polícia atua profissionalmente, de acordo com a lei”.

Adorno, como sociólogo, se diz muito influenciado, desde os tempos de aluno, pelo livro de Maria Sylvia de Carvalho Franco. “Ela descreve três vertentes: a violência entre os homens livres na sociedade escravocrata era intitucionalizada no Brasil tradicional, era uma prática instituída. Em segundo lugar, a violência era padronizada – se esperava que, diante de determinadas situações, a reação a elas fosse violenta. Terceiro, a violência era um imperativo moral – quem não reagisse com violência a determinadas situações ficava desmoralizado”.

Adorno comenta que, dos tempos cobertos no livro para a época atual, houve uma mudança muito grande e a violência hoje é muito menos institucionalizada, padronizada e imperativa do que então. No entanto, ele é incisivo: “Traços dessa cultura sobreviveram. A violência policial se pode dizer que em muitos casos é institucionalizada. Certos setores policiais acham que a violência do crime deve ser combatida com uma violência maior. Mas essa não é mais a atitude de toda a Polícia, muito menos de toda a população. A violência hoje não é padronizada - as famílias das classes pobres se queixam tanto da violência da Polícia como da violência dos bandidos”.

De todo modo, Adorno afirma que, em algumas situações, a violência ainda é encarada, em alguns setores, como um imperativo moral. “Nos conflitos de gangues, se alguém assedia a namorada de algum integrante da gangue, os seus membros imaginam que a única solução possível é a violência contra o assediador e seus aliados. Isso é válido tanto entre as camadas populares como entre jovens das classes médias”.

O sociólogo dá outro exemplo. “Se um pai de família diz que, se sua mulher ou sua filha for estuprada, ele matará o estuprador, é um caso em que se encara a violência como um imperativo moral. A violência institucionalizada hoje não é mais padrão, mas aparece”.

Voltando à vigilância policial em outros países sobre a mobilidade geográfica dos cidadãos, Adorno diz que “o controle é uma faca de dois gumes. Só é eficaz quando é internalizado pelas pessoas. O grande sociólogo alemão Norbert Elias demonstrou que o processo civilizatório é um processo de contenção dos impulsos agressivos – as etiquetas sociais significam que o outro é reconhecido como portador de dignidade”.

Ele acrescenta que o controle meramente externo acentua o autoritarismo não só entre os vigilantes como entre os vigiados. “Se a câmera me vigia, a minha reação pode ser que, quando imagino que a câmera não me alcança, eu me disponho a cometer a transgressão”, diz Adorno, embora também defenda que a câmera, além de fator de inibição, igualmente é um fator de responsabilização.

Outro fator envolvido na segurança, se se comparam os diferentes países, são as condições da infraestrutura urbana. “Ruas bem iluminadas, calçadas, com alta visibilidade, inibem o crime ou possibilitam a identificação dos criminosos. É claro que a presença da Polícia nas ruas também inibe o crime, ou possibilita a rápida captura dos criminosos. Na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, e onde as Polícias são profissionalizadas e controladas externamente, e nem sempre andam armadas, a Polícia é respeitada. Aqui, a população teme os bandidos, mas teme também a Polícia. Tanto na Europa como nos Estados Unidos e Canadá, e também no Brasil, a mobilidade geográfica é grande. Logo ela não é um fator explicativo”.

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