Há poucas semanas, o Diário do Comércio de São Paulo me encomendou a seguinte resenha:
Deliciosos “causos” sobre o encontro
de Getúlio com o presidente Roosevelt
Renato Pompeu
O consagrado jornalista Roberto Muylaert, que já dirigiu a Bienal de São Paulo e a TV Cultura, encontrou uma fórmula toda especial para escrever seu livro “1943 – Roosevelt e Vargas em Natal”, recém-lançado pela Bússola. Nele narra o encontro em Natal, capital do Rio Grande do Norte, entre os presidentes do Brasil, Getúlio Vargas (na verdade, ditador), e dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, em janeiro de 1943, em plena Segunda Guerra Mundial.
A fórmula foi a seguinte: Muylaert fez uma pesquisa exaustiva sobre tudo que pudesse estar relacionado a esse encontro, tais como os noticiários da imprensa da época, biografias dos dois presidentes, relatos sobre a Segunda Guerra Mundial, fontes brasileiras, americanas e de outros países, memórias pessoais e arquivos governamentais. Mas, ao transmitir essas informações tão trabalhosamente obtidas, checadas e confirmadas, mais do que um livro-reportagem, ele usou de uma técnica bastante peculiar para, ao mesmo tempo, informar exaustivamente o leitor e entretê-lo.
Poderíamos dizer que, nesse livro, Muylaert optou por, ao invés de fazer uma história do encontro, ou sobre ele fazer uma reportagem, apresentar uma série de crônicas sobre o assunto, amenamente escritas e agradavelmente lidas. Mas, na verdade, o que temos em mãos, sobre cada aspecto do importante encontro, é uma sucessão de “causos”, em que prevalece a oralidade, o ritmo das palavras, e acima de tudo uma série de relatos em que uma coisa puxa a outro, e se vai rodeando cada assunto, até que afinal, sem o leitor perceber nenhum esforço maior de compreensão, se assimila o todo das informações prestadas.
E as informações, assim agradavelmente transmitidas, são muitas, precisas, claras e importantes. Em primeiro lugar, a própria logística do encontro. Era algo inaudito: o presidente da nação mais poderosa do mundo, empenhada na maior guerra de todos os tempos, faz uma arriscadíssima viagem aérea de milhares de quilômetros, sujeita na época não só a acidentes como a ataques do inimigo alemão nazista, simplesmente para encontrar-se, secretamente, com o presidente de uma nação então periférica. Ainda mais quando o presidente visitante, Roosevelt, sofre de paralisia infantil e tem de andar, preferencialmente, em cadeira de rodas, ou, penosamente, se apoiar numa bengala, nesse caso por pouquíssimo tempo. De outro lado, o presidente visitado, Vargas, estava com um filho à morte, também por paralisia infantil, mas que afetou os pulmões, além das pernas, num hospital de São Paulo.
Ficamos sabendo que a base aérea americana de Parnamirim, em Natal, ocupada desde meses antes por tropas americanas, segundo um acordo prévio entre os dois presidentes, era na época o aeroporto mais movimentado do mundo. Recebia aviões de guerra dos Estados Unidos e outros países para que se dirigissem ao Norte da África (e, mais tarde, ao Sul da Europa), onde se travavam ferozes batalhas entre os Aliados ocidentais e tanques nazistas. Muylaert desfaz o mito de que a base aérea brasileira operada por militares americanos era uma base de lançamento de ataques por bombardeio aéreo contra as tropas nazistas no Norte da África, e de que, uma vez realizados esses ataques, os grandes aviões retornavam ao Brasil. Na verdade, a base aérea do Rio Grande do Norte era um ponto de passagem, descanso e reabastecimento de aviões que vinham dos EUA e em seguida partiam para a África, onde ficavam e/ou de onde partiam para a Europa, sem retornar ao Brasil.
Mas por que Roosevelt veio ao Brasil, se já tinha ocorrido o acordo para o Brasil ceder a base e esta já estava sendo operada por militares americanos? Muylaert esclarece que o presidente americano veio pedir que o Brasil enviasse tropas para a iminente invasão do Sul da Europa. Em troca, o Brasil receberia ajuda financeira e tecnológica para instaurar a usina siderúrgica de Volta Redonda, a empresa de mineração da Companhia Vale do Rio Doce e a Fábrica Nacional de Motores. Ou seja, o Brasil receberia investimentos imprescindíveis para a plena consolidação de sua industrialização. Para avaliar a importância do acordo entre os dois presidentes no que se refere à economia brasileira, basta pensar no que Volta Redonda e a Vale representam estrategicamente ainda hoje para o País.
No entanto, se isso foi o mais importante para o Brasil, o que resultou do encontro de maior importância para o mundo foi um acordo em torno da futura fundação da Organização das Nações Unidas. E aqui chegamos ao ponto mais alto do livro de Muylaert; o presidente Roosevelt acenou com a possibilidade de o Brasil integrar, desde o início, o Conselho de Segurança da ONU, coisa que o País persegue ainda hoje, setenta anos depois. Mas Roosevelt morreu antes de cumprir a promessa implícita no aceno, e ela foi retirada por seu sucessor, o presidente Harry Truman. A única peninha nesse livro precioso são alguns errinhos de revisão; numa página se diz, por exemplo, que o filho de Getúlio morreu aos 23 anos de idade e, em outra, que ele tinha 25 anos quando passou a sofrer sintomas da doença.
Em tempo: a base de Parnamirim foi o primeiro ponto por onde a Coca-Cola chegou ao Brasil, mais um dos deliciosos e informativos “causos” de Muylaert.
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