11 de junho de 2013

Erudições de Scorsese

Resenha para o Diário do Comércio de São Paulo - As eruditas conversas de Scorsese com Schickel - Renato Pompeu - Não é por acaso que o livro de entrevistas “Conversas com Scorsese”, lançado no Brasil pela Mostra-Cosac Naify um ano depois de sua publicação nos Estados Unidos, foi escrito pelo documentarista e crítico Richard Schickel, 78 anos, autor também de livros sobre outros grandes nomes do cinema americano, como Walt Disney, Harold Lloyd, Cary Grant, D.W. Griffith, Woody Allen e tantos outros. É que o diretor Martin Scorsese, 69 anos, é bem conhecido por seus filmes que retratam cruamente a brutal violência das ruas americanas. E Schickel, ao lado da famosa crítica Pauline Kael, fez parte de uma nova geração de críticos que nos anos 1960 soube registrar a importância cultural de filmes como “Bonnie e Clyde”, de Arthur Penn, atacados pela crítica moralista da época como extremamente violentos e mesmo estimuladores da brutalidade. Scorsese e Schickel são amigos há quarenta anos. As conversas que o livro registra desde então são, muito mais do que sobre a vida do diretor de “A última tentação de Cristo”, verdadeiros estudos eruditos sobre suas obras como diretor de longas de ficção e, bem menos, como documentarista. Merece algum destaque somente a infância de Scorsese em meio às gangues ítalo-americanas de Nova York, época em que ele sofria de asma e pelo menos por isso não participou de batalhas nas ruas – Scorsese afirma que testemunhou cenas muito mais violentas do que as de seus próprios filmes –, tendo logo se interessado pelo cinema. Os cinco casamentos de Scorsese, o relacionamento com suas filhas, as experiências com drogas e a influência de tudo isso em suas obras, recebem pouco ou mesmo nenhum espaço nas conversas. Estas parecem mais palestras e mesmo conferências, do que conversas mais descontraídas. Mas, além dos fãs específicos de Scorsese, os cinéfilos em geral saem de leitura do livro, ou de cada trecho, muito bem recompensados. Como se poderia esperar de um livro de entrevistas de um diretor a um documentarista, há muitas discussões técnicas, sobre, por exemplo, cortes, iluminação, cores, trilhas sonoras, roteiros. Mas o centro das conversas é a importância cultural de cada filme, entre eles “Caminhos perigosos”, “Alice não mora mais aqui”, “Taxi Driver”, “New York, New York”, “O último concerto de rock”, “Touro indomável”, “A cor do dinheiro”, “A última tentação de Cristo”, “Os bons companheiros”, “A época da inocência”, e tantos outros filmes famosos. A respeito de “Taxi Driver”, filme que transforma um taxista de Nova York num herói solitário, moralista e que faz justiça por suas próprias mãos – ecoando os mais famosos heróis do faroeste – Scorsese afirma: “Em ‘Taxi Driver’, quando Brian De Palma me deu o roteiro, vi nele minhas reações contra o mundo de que eu vinha, e do qual, de certa forma, queria me livrar. Não queria contar de onde eu vinha. O filme tinha uma raiva que eu via em meus avós. Com ‘Taxi Driver’, eu ia detonar com isso, para poder ficar ainda mais livre. Penso que a conexão imediata, quando li, foi com a raiva, a fúria e a solidão – não fazer parte de um grupo. Eu sempre fui marginal. Você cresce num bairro em que ‘homem’, entre aspas, é o sujeito que pode entrar numa sala, dar umas porradas nas pessoas e vencer, como num filme de Schwarzenegger. Mas, por outro lado, eu ouvia meu pai dizer coisas diferentes sobre o que é ser homem; tinha a ver com ser moralmente forte. Vindo disso, não sendo realmente capaz de brigar na rua do jeito que outros meninos brigavam, e tendo de manter tudo dentro de mim, meus sentimentos explodiram na tela com ‘Caminhos perigosos’. Depois, com ‘Taxi Driver’, nós realmente adotamos a ideia de não fazer parte do grupo, não fazer parte de nada”. Ao longo do livro, Scorsese discute seu prolongado e frutífero convívio com Harvey Keitel, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, de que resultaram tantos filmes, e as maiores influências que assimilou, como os diretores John Cassavetes e Roger Corman. Já sobre “A última tentação de Cristo”, filme baseado no romance homônimo do escritor grego Nikos Kazantzakis, em que Cristo é submetido a várias tentações, inclusive a de escapar do sofrimento de ser crucificado, especulando-se que, se Cristo cedesse à tentação, a humanidade não poderia se salvar, o crente Scorsese diz ao ateu Schickel: “Muitas vezes as pessoas pensam: eu vou à igreja no domingo e tudo bem. Sabem que Jesus sofreu, mas não se perguntam de fato para que foi o sofrimento. Fiquei incomodado quando ‘A Última Tentação” foi lançado e as pessoas diziam que era ofensivo à nossa fé. Eu nunca quis ofender a fé de ninguém. Se você tem fé, é uma coisa boa. Se você tem ou não tem fé, pessoalmente, é uma luta constante. Mas existe uma diferença entre fé e desenvolver algum tipo de caminho espiritual, uma grande diferença. Fé, um determinado tipo de fé, é uma coisa perigosa; pode levar ao assassinato”. Talvez uma das lições do livro seja a de que, de assassinato, Scorsese realmente entende.

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