18 de dezembro de 2013

Esporte e cidadãos comuns

Da Revista do Brasil - O destino do esporte - Renato Pompeu - Com o Brasil sendo sede da próxima Olimpíada, daqui a dois anos, convém meditar sobre o destino do esporte na sociedade contemporânea. Para isso podemos nos valer das discussões constantes no livro “Euphoria and Exhaustion – Modern Sport in Soviet Culture and Society” (“Euforia e exaustão – o esporte moderno na cultura e na sociedade soviéticas”), obra de vários pesquisadores europeus-ocidentais, editada por Nikolaus Katzer, Sandra Budy, Alexandra Köhring, Manfred Zeller, publicada em inglês pela Campus. A história do esporte deve ser narrada como uma história da cultura que leva em conta os arcabouços sociais em que está inserida, insistem esses autores. Nesse sentido, aponta Katzer, em seu prefácio: “A cultura física e o esporte devem ser entendidos como fenômenos da modernidade, estreitamente ligados àqueles desenvolvimentos sociais, políticos e culturais desencadeados pela industrialização, pela urbanização e pela construção de estruturas administrativas centralizadas”. Os estudiosos do esporte, tanto sociólogos e antropólogos como jornalistas altamente especializados, têm chamado a atenção nas últimas décadas sobre a cada vez mais intensa mercantilização do esporte. O interessante, entretanto, é que essa mercantilização não existia na antiga União Soviética, em que mesmo os esportistas especializados, que tinham o esporte como atividade central em suas vidas, não podiam oficialmente ganhar a vida pelo esporte. Tinham de ter outro emprego, em geral como professores de educação física e técnicos de determinado esporte, ou como militares. No livro acompanhamos como, nas primeiras décadas do poder soviético, o entusiasmo pelo esporte era geral, tanto entre as autoridades como entre a população. O ideal do “homem novo”, que seria criado pelo socialismo, exigia, entre outras coisas, corpos saudáveis, fortes e habilidosos, envolvendo “tanto a sociedade como um todo quanto o indivíduo, segundo normas científicas e estéticas”, nas palavras de Katzer. Segundo se vê no livro, enquanto a massa da população via no esporte um meio de se desenvolver e de desenvolver a humanidade de cada um, as autoridades o viam, não só como meio de promover a saúde pública, mas também como meio de disciplinamento social. Não se tratava, como objetivo principal, pelo menos como objetivo principal proclamado, de formar atletas de ponta que vencessem competições internacionais, mesmo porque a União Soviética, nas suas décadas iniciais, sequer participava de modo regular de competições internacionais. Tratava-se de tornar cada cidadão e cada cidadã num esportista e numa esportista. O público parecia imaginar que, praticando esportes, cada um atingiria um patamar mais alto de bem-estar físico e mental. As autoridades pareciam contar com as capacidades do esporte de propiciar mobilizações de massa e de disciplinar toda a coletividade numa rede de regras e de hierarquias, com a vantagem de que essa disciplina era livremente consentida. Essa foi a fase da euforia, com a generalização do acesso da população a instalações esportivas e aos equipamentos adequados para cada esporte que quisesse praticar. Entretanto, na medida em que, no pós-Segunda Guerra Mundial, a União Soviética passou a disputar competições internacionais, no contexto da Guerra Fria, em que ficava em primeiro plano a competição com os países capitalistas, o caráter do esporte soviético se foi alterando. De um lado, as autoridades tenderam a focar seus esforços esportivos na formação de atletas de ponta. De outro lado, a população em geral não podia esperar que todos, ou uma grande parte, ou mesmo uma parte significativa dela fosse composta por atletas de ponta. Assim, apesar de não ter ocorrido a intensa mercantilização das várias atividades esportivas que se verificava nos países capitalistas, a partir dos anos 1960 o esporte soviético, como atividade da sociedade como um todo, passou a entrar num longo declínio. Tudo isso se deu em meio ao desenvolvimento da televisão. O grande público, mesmo na União Soviética, passou mais a se interessar em assistir a espetáculos com os atletas de ponta, do que com o ideal de cada um e todos desenvolverem a cultura física. Será que não será mais possível voltar a esse ideal? Qual deve ser o papel do Estado no fomento às atividades esportivas? Deveria ser o mesmo da iniciativa privada, ou seja, como fazem no geral os clubes de esportes profissionais e as empresas patrocinadoras de competições, subsidiar a formação de atletas de ponta, para que se tornem aptos a desempenhar espetáculos lucrativos e/ou prestigiosos? Ou deveria ser, como foi nas primeiras décadas do poder soviético, propiciar saúde, força, beleza e plasticidade físicas a toda a população? No caso do Brasil, as coisas parecem estar invertidas: os subsídios para o esporte privilegiam os atletas de ponta, enquanto as pessoas comuns têm de gastar bom dinheiro em academias.

Nenhum comentário: