19 de dezembro de 2013

O drama judaico na literatura

Do Diário do Comércio de São Paulo - O drama judaico, num estudo belo como um grande romance - Renato Pompeu - Um romance sobre romances. Assim, paradoxalmente, pode ser definido o estudo acadêmico “Passagens – Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole”, de Luís S. Krausz, publicado pela Edusp e pela Fapesp. Ainda que cuidadosamente pesquisado entre centenas de fontes e meticulosamente documentado, esse livro, mais do que como um conjunto de ensaios notavelmente erudito e informativo, se lê com a emoção, a admiração, o prazer, o encantamento e, mesmo, a suspensão do fôlego com que se lê um grande romance da tradição clássica. Trata-se da saga, também drama, epopeia e que acabou redundando em tragédia, do encontro da cultura judaica tradicional dos chamados guetos da Europa Oriental com a cultura iluminista, principalmente alemã e austríaca, em particular nos séculos 19 e 20. Durante séculos, desde a destruição do Segundo Templo em Jerusalém pelos romanos, no começo da era cristã, e especificamente desde a Idade Média, a grande maioria dos judeus da Europa tinha vivido como que “fora do tempo”, mais especificamente, fora do tempo europeu. Particularmente os judeus da Europa Central e da Europa Oriental viviam, nos bairros murados nas cidades de regiões de língua alemã, e nas aldeias exclusivamente judaicas nas áreas rurais das regiões de línguas eslavas, notadamente na Polônia, como que sem presente, num tempo só constituído pelo passado bíblico e pela espera da futura vinda do Messias. A Polônia era de longe o país de maior população judaica da Europa, em fins do século 18. Então ocorreram dois eventos cruciais. De um lado, a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, começava a atingir os países de língua alemã. De outro lado, a Polônia até então independente foi repartida entre a Alemanha, a Áustria – países em que os judeus, embora discriminados, se viram livres para circular –, e a Rússia, em que se viram confinados às regiões mais ocidentais. Na Alemanha e na Áustria se estava disseminando o iluminismo, o culto à Razão, à ciência, aos direitos humanos encarnados no lema da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Muitos judeus fizeram então uma dupla migração, material e espiritual: fluíram dos guetos e das aldeias para as grandes metrópoles como Berlim e Viena e procuraram assimilar a nova cultura “ilustrada”, passando a encarar como retrógrada, obscurantista e supersticiosa a sua secular cultura tradicional. Mas, conforme Krausz descreve com mão de artista, a atitude dos judeus que procuravam se assimilar como cidadãos dos nascentes Estados nacionais e “de confissão mosaica”, e não mais como “gente de nação” judaica, tal como foi expressa em seus trabalhos de ficção, em particular em romances, foi muito mais ambígua e muito mais complexa do que essa simples ansiedade de ficar em dia com o progresso e com as Luzes. Acontece que, se a Revolução Industrial e o Iluminismo estavam proporcionando uma vida material bem mais confortável e liberdades individuais muito maiores do que as vigentes nos guetos e nas aldeias, também estava ocorrendo um rebaixamento não só da espiritualidade encarnada na religiosidade, como também na solidariedade da vida comunitária. Se estava passando da comunidade, em que todos tinham um papel a cumprir em benefício de todos os outros, para a sociedade, em que cada um vela exclusivamente por si. Examinando as obras de escritores bem conhecidos, como Heinrich Heine, e outros bem menos lembrados, como Joseph Roth, Krausz nos descreve de modo pungente e emotivo os dilemas cruciais dessa situação. De um lado, tanto os personagens como os autores desses romances, assim como os judeus comuns de seu tempo, ansiavam pela modernização e pela assimilação, ao mesmo tempo em que viam que a modernização não era tão perfeita e tão maravilhosa quanto se alardeava, e em que sentiam que a assimilação não era tão completa quanto se prometia – continuavam encarados com desconfiança pela maioria cristã, mesmo laica e até mesmo ateia. De outro lado, encaravam a cultura judaica tradicional com um misto de menosprezo por seu “primitivismo” e de admiração e nostalgia, pelo seu comunitarismo. Conforme o autor e o romance, e conforme cada personagem, essas contradições predominavam de modo diferente em cada caso. Até que esse nó entre assimilados e tradicionalistas foi desatado quando todos os judeus na Europa foram igualados entre si como vítimas do Holocausto. Que a esperança nunca morre, prova essa bela homenagem de Krausz a essa saga já milenar.

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