28 de janeiro de 2014

A educação como processo social

Introdução - O objetivo do presente trabalho tem uma dupla vertente. A primeira é discutir a educação, a socialização e a cultura como processos sociais, à luz dos conceitos desenvolvidos em três artigos de sociólogos e educadores, nomeadamente dos sociólogos americanos BERGER, P.; BERGER, B. Socialização: como ser um membro da sociedade. In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002; do sociólogo brasileiro CANDIDO, A. A estrutura da escola. In: PEREIRA, L.; 3) FORACCHI, M. M. Educação e sociedade. 11. ed. São Paulo: Nacional, 1983, p. 106-128, e dos educadores brasileiros NOGUEIRA, C.M.M.; NOGUEIRA, M.A., A sociologia da educação em Pierre Bourdieu: limites e contribuições. In Educação e Sociedade, vol.23 no.78 Campinas Apr. 2002, em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302002000200003&script=sci_arttext, acessado em abril de 2012. A segunda vertente é verificar a aplicabilidade das conceituações apresentadas pelos três artigos à temática do filme americano O curioso caso de Benjamin Button, dirigido por David Fincher, especificamente quanto à educação, ao processo de socialização desde a primeira infância e aos valores culturais e comportamentos de seu personagem principal. O debate dessas duas vertentes será feito na parte do presente trabalho intitulada de “Desenvolvimento”. Finalmente, na terceira parte, a “Conclusão”, se tentará fazer uma discussão a respeito das contribuições dos conceitos desenvolvidos nos três artigos a uma melhor compreensão dos problemas em geral da sociologia da educação e da sua aplicabilidade às tramas do filme. - Desenvolvimento - Nessa parte, se discutirá inicialmente cada artigo e, em seguida, se discutirá o filme. Finalmente, se tentará aplicar ao filme os conceitos apresentados ao longo dos três artigos. No artigo de BERGER e BERGER, o leitor é introduzido ao universo da socialização de cada indivíduo, desde o nascimento, dentro de seu grupo social específico e da sociedade em geral de que o indivíduo e seu grupo fazem parte. A socialização é inicialmente apresentada como o processo que popularmente é conhecido como “criação” de cada bebê. Trata-se de fazer o bebê assimilar e exercer os comportamentos esperados pelo grupo no que se refere aos hábitos alimentares e aos hábitos higiênicos, esses especialmente relacionados aos atos de urinar e de defecar, e também os valores desse grupo no que se refere ao comportamento em geral. Mostra-se como a socialização varia não só de sociedade para sociedade como de um grupo social para outro grupo social dentro da mesma sociedade, e ainda ao longo do tempo em cada grupo social e em cada sociedade. Especificamente se discute como, na sociedade americana da época coberta pelo artigo, os anos 1950-1960, na chamada classe média, se estava introduzido o hábito de fornecer alimentos ao bebê sempre que este manifestasse fome ou vontade de comer, enquanto na chamada classe operária se mantinham os hábitos antigos, de fornecer alimentos somente em horários determinados. Também se discute como, na sociedade americana da época, tanto na classe média como na classe operário, havia a preocupação de disciplinar bastante rigorosamente, a partir de uma certa idade do bebê, as necessidades fisiológicas da micção e da defecação, nomeadamente os locais e o modo onde e como se devia satisfazê-las, bem como os modos de livrar-se dos dejetos e de se limpar, enquanto numa tribo africana, os gulsi, a criança recebia nesse campo um disciplinamento muito menos rígido, pois era instruída simplesmente a urinar onde e quando sentisse vontade e a defecar simplesmente numa moita situada não muito perto das choças habitadas pela tribo. Igualmente, se destaca que a socialização prossegue através de instruções verbais, isto é, se exerce por meio da linguagem, e, em sociedades ditas civilizadas, também por meio da educação formal. Nota-se como, na época, os alunos americanos tinham muito maiores dificuldades em ficar “quietos” durante uma aula inteira do que, por exemplo, os alunos franceses; como as meninas são socializadas de forma diferente dos meninos, como a socialização prossegue até a idade adulta de cada indivíduo, dependendo dos papéis e funções sociais que venha a desempenhar. Já no artigo de Candido temos toda uma análise das diversas estruturas sociais envolvidas numa escola, no caso do artigo uma escola que vai desde o início da educação formal até o fim do ensino secundário. Essas estruturas sociais são as mais diversas: há por exemplo o grupo dos professores, o grupo dos alunos, o grupo formado em cada classe, e seus diversos subgrupos; existe a estrutura administrativa, com sua hierarquia e suas sanções, bem como a estrutura educacional, em que em geral a hierarquia e as sanções são outras, embora envolvam, estruturadas em grupos diferentes, as mesmas pessoas. Há ainda as estruturas de liderança e de autoridade, formais e informais; os grupos públicos e os grupos clandestinos ou secretos, por vezes contrários a determinadas normas e/ou hierarquias administrativas e educacionais; grupos segundo a idade, segundo o sexo; segundo o desempenho escolar; grupos hierarquizados segundo o prestígio ou a origem social de seus integrantes. Nota-se como, por exemplo, as sanções administrativas e educacionais variam de sociedade para sociedade (na época, as escolas brasileiras já não admitiam castigos físicos como tapas e palmatórias, ainda presentes então nas escolas inglesas). Embora o artigo se limite a descrever em geral, teórica, abstrata e esquematicamente as diferentes estruturas sociais e grupos sociais presentes numa escola típica, como se estivesse descrevendo gráficos sobre forças em interação, CANDIDO deixa bem claro que essas estruturas possuem características próprias de cada escola concreta. Finalmente, o artigo de NOGUEIRA e NOGUEIRA discute a pertinência ou falta de pertinência dos conceitos de sociologia da educação desenvolvidos a partir dos anos 1960 pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, o mais influente de sua geração em seu país e um dos mais influentes internacionalmente. Inicialmente se observa que estava em crise desde os anos 1950 o chamado paradigma funcionalista, segundo o qual a educação formal, numa sociedade democrática contemporânea, equaliza as oportunidades de todos os alunos e fornece possibilidades de ascensão social segundo o mérito escolar. Pesquisas da época começaram a demonstrar que os processos educacionais estavam longe de distribuir equitativamente as oportunidade de ascensão social a todos os alunos – pelo contrário, eram mais favorecidos os alunos que já vinham de famílias e meios sociais mais favorecidos. Os autores notam que essas pesquisas foram consideradas pela maioria dos observadores e dos educadores como falhas que poderiam e deveriam ser corrigidas para transformar cada escola num ambiente neutro a influências externas, que forneceria a todos os alunos as mesmas oportunidade de inserção na sociedade, só variando quanto ao mérito escolar. Bourdieu foi um dos primeiros e talvez o principal pesquisador a elaborar o conceito de que, ao contrário do que imaginavam os chamados funcionalistas, a função da escola não era a de instaurar uma progressiva e sempre maior igualdade das oportunidades, mas, ao contrário, a função fundamental da escola seria reproduzir as desigualdades entre as classes sociais e entre as frações de classes sociais. Nesse sentido, a escola teria como valores culturais eminentes os próprios valores culturais das elites dominantes, bem conhecidos dos alunos oriundos dessas elites, mas mais ou menos desconhecidos e não familiares aos alunos de outras origens sociais, tanto mais quanto mais “baixa” fosse essa origem. Bourdieu, segundo o artigo, teria procurado aperfeiçoar a teoria segundo a qual a classe social de origem determina inexoravelmente o desempenho escolar de cada aluno; primeiro, não trabalhando somente com o conceito de classe a partir do capital econômico que cada classe detém, mas também a partir do que chama de capital social (os relacionamentos que a família de origem do aluno pode proporcionar), de capital cultural (os comportamentos e os conhecimentos que cada aluno adquiriu e vai adquirindo fora da escola, no seio da família e de ambientes por ela frequentados, desde o hábito de ler livros até as maneiras à mesa, etc.), e de capital simbólico (que não está muito claramente definido no artigo, mas que parece referir-se a símbolos de status, como prestígio e, citado especificamente, o casamento com alguém de maior ou menor prestígio). NOGUEIRA e NOGUEIRA veem como grande limitação da sociologia da educação de Bourdieu a sua dependência da noção de classe. Os autores notam como estudos posteriores, mais empíricos do que os do sociólogo francês, demonstram que outras variáveis, como características individuais, explicam melhor o êxito escolar e o êxito profissional de cada aluno do que simplesmente a sua origem de classe. Já o filme O curioso caso de Benjamin Button, de 2008, é uma obra de ficção baseada num conto de 1922 do famoso escritor americano Scott Fitzgerald. Trata-se de um cidadão que, ao contrário das pessoas reais, nasce idoso na cidade americana de Nova Orleans e vai ficando cada vez mais jovem na medida em que passa o tempo, até se transformar em bebê e vir a falecer como tal. Com a mãe tendo morrido no parto e o bebê idoso sendo considerado um monstro pelo pai empresário, este o abandona num asilo de crianças, idosos, desvalidos e deficientes, mantidos numa casa e cuidados por uma senhora negra. Do ponto-de-vista da socialização, o que nos interessa aqui é que o bebê é tão idoso que não consegue andar, tendo que aprender a andar de cadeira de rodas. Não podemos saber como ele aprendeu a ler e a escrever, nem como foi sua educação higiênica e alimentar, pois imediatamente ele é mostrado aos 12 anos de idade, quando já está andando de muletas e se relaciona bastante amigavelmente com uma menina de seis anos que passa a visitar a avó que vive no asilo; esse relacionamento tem uma importância decisiva em sua socialização; na medida em que fica fisicamente cada vez mais jovem, ele vai amadurecendo a ponto de começar a trabalhar num barco rebocador, em países distantes, até que em Murmansk, na Rússia, já andando sem muletas, se inicia sexualmente e amorosamente com uma mulher inglesa, esposa de um ministro também inglês. Como marinheiro, ele participa da Segunda Guerra Mundial, no combate contra um submarino. Em 1945, retorna a sua cidade natal, Nova Orleans, e descobre que a menina é agora uma dançarina de balé de 21 anos de idade, além do que o pai dele, que o costumava ver sem declarar-se seu pai, morre lhe deixando sua herança de empresário bem sucedido. Em 1957, a dançarina de balé, em Paris, quebra a pena e não pode mais dançar, Benjamin vai vê-la, mas só cinco anos depois, em 1962, de novo em Nova Orleans, com ele cada vez mais jovem, é que os dois se envolvem amorosamente, do que resulta uma filha, mas que Benjamin não acredita ser sua, porque ela nasceu normal. Ele vende suas propriedades e deixa sua fortuna para mãe e filha e se afasta, viajando pelo mundo. Em 1991, assistentes sociais avisam a mulher que um menino de 12 anos, que leva uma vida miserável numa casa abandonada, é na verdade Benjamin. Ele é cuidado por ela até passar a ser sucessivamente uma criança e um bebê, condições em que morre nos braços dela. \Ou seja, apesar de ter nascido idoso e ficado cada vez mais jovem até morrer bebê, Benjamin passou por todas as fases de socialização descritas por BERGER e BERGER, e de algumas fases da educação formal descrita por CANDIDO, embora num asilo e não numa escola, sendo a ele ainda menos aplicáveis os conceitos de NOGUEIRA e NOGUEIRA, porque sua origem social real não esteve relacionada com sua educação, mas influiu em sua vida. - Conclusão - A conclusão maior que se pode tirar a partir da aplicação dos conceitos de BERGER e BERGER, CANDIDO e NOGUEIRA e NO GUEIRA à educação, socialização e valores culturais e comportamentos do personagem principal do filme é que esses conceitos são por demais fixos para serem aplicados a um caso tão concreto e tão específico quanto o de Benjamin Button, a não ser de maneira muito geral. BERGER e BERGER ainda tentam dinamizar seus conceitos, aplicando-os a situações concretas, mas os de CANDIDO ele mesmo os apresenta como esquemáticos, com fins didáticos, de introdução ao tema da educação e não de exploração de todas as ricas possibilidades dos temas. Quanto aos conceitos de Bourdieu, pelo menos tal como estão descritos por NOGUEIRA e NOGUEIRA, são por demais estáticos. É como se as classes sociais segundo o seu capital econômico, o seu capital social, o seu capital cultural, o seu capital simbólico, cada fração específica de classe, fossem escaninhos em que se procurasse enfiar cada realidade concreta. Cada fenômeno observável ou entraria num escaninho, ou entraria noutro. Assim, um determinado aluno é visto como membro de uma classe, ou de uma fração de classe, portador, ou suporte, de um determinado capital econômico, de um determinado capital social e assim por diante. Cada pessoa seria como um feixe de várias posições diferentes em várias séries diferentes. A crítica de NOGUEIRA e NOGUEIRA não melhora as coisas, apenas introduz mais variáveis, acrescentando posições e séries enfeixadas por parte de cada pessoa. O tipo de teoria adotado pelos três artigos não permite movimentar os conceitos e incorporar novos aspectos do real na medida em que se passa da teoria para a prática e não permite conceituar, assim, um caso tão específico como o de Benjamin Button. ´ Referências - BERGER, P.; BERGER, B. Socialização: como ser um membro da sociedade. In: FORACCHI, M. M.; MARTINS, J. S. Sociologia e sociedade: leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002; CANDIDO, A. A estrutura da escola. In: PEREIRA, L.; 3) FORACCHI, M. M. Educação e sociedade. 11. ed. São Paulo: Nacional, 1983, p. 106-128, NOGUEIRA, C.M.M.; NOGUEIRA, M.A., A sociologia da educação em Pierre Bourdieu: limites e contribuições. In Educação e Sociedade, vol.23 no.78 Campinas Apr. 2002, em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302002000200003&script=sci_arttext, acessado em abril de 2012. O curioso caso de Benjamin Button, filme de 2008 com Brad Pitt e Cate Blanchett, direção de David Fincher, Paramount Pictures, Estados Unidos

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