17 de janeiro de 2014

Pedro Nava e a memória nacional

Da Carta Capital - Pedro Nava e a memória nacional - Em boa hora a Companhia das Letras começa a reeditar as memórias do médico e escritor mineiro, radicado desde os anos 1930 no Rio, Pedro Nava (1903-1984), sete volumes de prosa encantadora e de rica documentação sobre a vida da intelectualidade brasileira modernista, da qual ele foi um dos baluartes, publicados entre 1972 e 1983: “Baú de ossos”, “Balão cativo”, “Chão de ferro”, “Beira-mar”, “Galo-das-trevas” e “Círio perfeito”, mais uma obra póstuma, incompleta, “Cera das almas”, de 2006. Mais do que isso, a memorialística de Nava representa uma verdadeira epítome da constituição da nacionalidade brasileira. Será interessante acompanhar como suas memórias, que tanta repercussão tiveram nos anos 1970 e 1980, serão recebidas pelo público de hoje, principalmente entre os que não viveram aquela época. Estão sendo lançados o “Baú de ossos” (originalmente publicado em 1972) e “Balão cativo” (1973), ambos com apresentação de André Botelho, o primeiro incluindo uma nota de Carlos Drummond de Andrade e posfácio de David Arrigucci Jr.; o segundo contando com poemas de Drummond e de José Geraldo Nogueira Moutinho e com uma crônica de Paulo Mendes Campos. Na época, em pleno auge repressivo do regime militar, as memórias de Nava, nas palavras então do grande crítico Antônio Cândido, foram bastante estimulantes, por tratarem do “mundo referente”, ou seja, aquele mundo que serve de referência para todos, exatamente o mundo real, a sociedade real que existe fora de cada cérebro humano e de todos os cérebros humanos. Esse mundo, naquele tempo, tendia, por causa da censura e do clima de repressão, por entre as torturas e assassínios de oposicionistas, a ser tratado, pelas belas-letras, apenas alegoricamente. Nava, falando do passado, mas com olhos do presente, deu um bem-vindo banho de realidade nos seus leitores ávidos de conhecimentos sobre a sociedade brasileira. Nava nasceu em 1903 em Juiz de Fora, MG, filho de um médico cearense aparentado com a futura escritora Rachel de Queiroz. Formou-se no secundário no Rio de Janeiro, no famoso Colégio Dom Pedro II, onde foi aluno de João Ribeiro. Levou sete anos, de 1921 a 1928, estudando medicina em Belo Horizonte, tendo se tornado, profissionalmente, um dos médicos e, principalmente, um dos historiadores da medicina mais importantes do País. Sempre teve interesses intelectuais, artísticos e culturais, acompanhou de perto a introdução e o desenvolvimento do modernismo no Brasil, tendo conhecido os escritores Mário de Andrade e Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral, quando da visita deles a Minas em 1924. Nos anos 1930, passou a exercer a medicina no Rio de Janeiro, onde se suicidou em 1984, segundo se supõe, para fugir à chantagem de um garoto de programa. Casado, não teve filhos. Por ter ficado surdo, aposentou-se da medicina e se dedicou às suas memórias. Estas são altamente evocativas de quase um século da vida e, acima de tudo, da cultura brasileira, desde o nascimento até a morte de Nava. Vemos um País empenhado em cumprir o sonho modernista de ser uma grande Nação, mais do ponto de vista cultural do que material. Esse sonho nasceu num Brasil, retratado por Nava, num tempo em que a alta cultura nacional era bem mais um arremedo da cultura europeia fora de lugar. Agora que esse sonho foi em grande parte cumprido, com a rica e diversificada cultura brasileira popular transportada para o que se pode chamar de ethos nacional, reconhecida internacionalmente, será que os brasileiros já nascidos em meio a essa consagração, poderão reconhecer suas raízes nos textos de Nava, belos como costumam ser os sonhos quando não são pesadelos? – RENATO POMPEU

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