6 de fevereiro de 2014

Modernell, notícia e fábula

Do Diário do Comércio de São Paulo - Renato Modernell, a fábula como notícia e a notícia como fábula - Renato Pompeu - O consagrado escritor, jornalista e professor universitário gaúcho Renato Modernell, 59 anos, radicado em São Paulo há quatro décadas, virou notícia e fábula ao mesmo tempo, ao ter acabado de lançar uma ficção, “Gird, o quarto mago”, edição do autor, e a não-ficção “A notícia como fábula – Realidade e ficção se confundem na mídia”, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Summus Editorial. Virou notícia por causa da encantadora e mágica fábula que escreveu sobre o persa Gird, o quarto mago após os Três Reis Magos que acompanharam o nascimento de Jesus e que vai acompanhar a Paixão de Cristo. A partir da ideia de que, na Pérsia de mais de dois mil anos atrás, começou a acontecer a calamidade de o fogo esquentar cada vez menos até se tornar fogo frio, alarmando a população, Modernell cria com muita segurança e precisão um mundo mais do que surrealista, em que acontecem as coisas mais insólitas e absurdas, mas com uma lógica implacável e uma tranquilidade olímpica mesmo nas descrições mais inusitadas e fantásticas. É a narrativa em estado puro, pois paira suspensa e em rigoroso suspense com total independência em relação ao chamado mundo real. Ele cria um mundo imaginário e imaginoso, maravilhoso no sentido filosófico do tema, em que se vão sucedendo cenas regidas por leis naturais e relações sociais totalmente desenvolvidas pela fecunda fabulação do autor. Tal é a capacidade criativa de Modernell que a sua narração de situações irreais parece irrepreensivelmente verossímil. O sentimento que desperta no leitor, quando pincela cada cena e cada fala, é o de que não há dúvida de que, se isso pudesse realmente acontecer, aconteceria do modo como está sendo descrito. Não se trata, como se poderia cogitar, de que Modernell tenha sucumbido à presente voga mística da ficção mundial. Nem de que ele tenha pagado um tributo aos novos tempos. Trata-se, isso sim, de uma espetacular façanha de fabulosidade. Com muito engenho, ele na verdade cria, para além do antigo realismo mágico da literatura latino-americana e para além do sectarismo religioso dos grandes best-sellers internacionais da atualidade, uma espécie de racionalismo mágico, ou lógica mística. A tal ponto Modernell nos envolve com sua fala mansa que em momento algum nos surpreendemos ou nos chocamos com a sucessão de milagres que ele descreve. Com simplicidade que chega à candidez, desfilam acontecimentos mágicos como um sonho ou como um conto de fadas, que abordam questões tão complexas como o desenvolvimento e o exercício da sexualidade e a salvação da alma de cada um. Resumindo, confrontados com “Gird”, estamos diante de um virtuoso exercício de virtualidade, em que, rigorosamente, Modernell vai além do surrealismo e da chamada escrita automática. Aqui o escritor não escreve o que lhe vem à cabeça, o que vem de seu subconsciente e de seu inconsciente. Ao invés de ser resultado de uma imediaticidade instantânea, o livro é resultado de uma laboriosa, cuidadosamente arquitetada, criação de uma nova realidade, sólida como um bloco de tijolos, apesar de totalmente imaginária. Já em “A notícia como fábula”, originalmente uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo, Modernell inverte totalmente a situação e discute, por meio de um cotejamento entre textos jornalísticos, a difícil relação dos seres humanos com a realidade que se presume existir fora do pensamento de cada um. Por trás do debate sobre as relações entre a notícia de um jornal ou revista e o “fato” que teria ocorrido e dado origem à notícia, por trás do problema de que a notícia publicada no jornal ou revista é apenas uma versão, inevitavelmente falha, daquele acontecimento, sendo o jornalista apenas alguém que, como todo mundo, viu apenas parcialmente o que ocorreu, está uma discussão tão antiga quanto a humanidade: até que ponto um ser humano pode realmente “observar” o mundo externo? Com apresentação do bem conhecido jornalista José Carlos Marão, experimentado repórter da famosa revista que tinha o significativo nome de “Realidade”, o ensaio de Modernell lembra uma antiga constatação do jornalista Paulo Pompeu, já falecido, que, com mais de meio século de jornalismo diário, chegou à conclusão de que só se pode acreditar numa notícia de jornal se não temos mais nenhuma fonte sobre o mesmo tema. Se tivermos outra fonte, saberemos que as coisas não foram bem assim. Mas isso é uma situação inelutável da condição humana: toda comunicação de um “fato” é parcial – apenas o jornalista, como comunicador profissional, procura reduzir ao máximo essa carga de subjetividade. Enfim, Modernell encarna tanto a notícia como a fábula, em suas duas novas obras.

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