4 de fevereiro de 2010

Satã não existe, nem na Bíblia

A seguinte resenha me foi encomendada há algum tempo pelo Diário do Comércio, de São Paulo:

Em busca da verdadeira história de Satã

O Demônio, tal como o concebemos hoje, o Senhor do Mal que preside ao Inferno, e que se contrapõe a Deus Senhor do Bem, não existe na Bíblia, nem no Velho, nem no Novo Testamento – é o que argumenta o pesquisador americano Henry Angskar Kelly, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, no livro Satã, uma biografia, lançado no Brasil pela Editora Globo. Kelly mostra como, na Bíblia, a palavra “Satã” ora é um substantivo comum, significando “adversário”, ora, como no Livro de Jó e no Novo Testamento, indica um personagem encarregado por Deus de governar o mundo, para vigiar e testar os seres humanos no que se refere à sua fidelidade a Deus. No Novo Testamento, Cristo também prevê que, no fim dos tempos, esse funcionário de Deus deixará de governar o mundo.
Kelly demonstra ainda que a imagem de Satã tal como o imaginamos atualmente, foi sendo criada ao longo dos séculos que se seguiram à morte de Cristo, em especial pelos Pais da Igreja, ou seja, escritores cristãos atuantes entre os séculos 2.o e 8.o. Eles é que identificaram Satã com a serpente que tenta Eva, serpente que no Gênesis não aparece como demoníaca. Eles é que desenvolveram os atributos de Satã como Senhor do Mal, num maniqueísmo que em princípio seria incompatível com uma fé monoteísta. Aqui valeria ressaltar que, numa de suas pouquíssimas falhas, a tradução parece ter apresentado como “origens” o termo que tudo indica se referia a Orígenes, um teólogo egípcio da passagem do século 2.o para o século 3.o.
Também a idéia de que Satã, ou Lúcifer, era um anjo que se revoltou contra Deus e se tornou o Demônio, não consta nem do Velho, nem do Novo Testamento, mas surgiu posteriormente, como prova Kelly. Este, porém, parece ser um cristão devoto, que como bom protestante só quer acreditar na Revelação, ou seja, na Bíblia, e assim quer propagandear entre seus companheiros de fé protestantes a noção de que Satã como Senhor do Mal é uma criação da Tradição, isto é, dos acrescentamentos feitos aos ensinamentos da Bíblia tanto pela Igreja Católica Romana como pelas Igrejas Católicas Ortodoxas.
Um bom protestante só deve acreditar na Bíblia – e assim não pode acreditar no Diabo dos católicos, nem no Satã dos muçulmanos: esta parece ser a mensagem central de Kelly. No entanto o tema é atraente tanto para protestantes como para católicos, para os interessados em geral em religião, e para todas as pessoas com sentido humanista.
Mas temos de levar em conta que, embora o tema seja tão atraente, o estilo de Kelly não é tão atraente. Trata-se de uma obra erudita que será lida com maior proveito por outros eruditos, e não de um trabalho a ser lido e compreendido com facilidade. Dizem que “o diabo está nos detalhes” e o leitor leigo, o leitor comum, se perde nas miríades de pequenos detalhes, de citações isoladas aqui e ali, às vezes de uma palavra só, ou de uma frase isolada, com que Kelly vai montando seu argumento.
Assim, embora o leitor mais informado saia convencido, ao final do livro, da correção da tese central de Kelly – de que Satã, ou o Demônio, ou o Diabo, tal como é concebido pela esmagadora maioria dos cristãos, não consta da Bíblia e é uma criação posterior, ao menos a partir de dois séculos depois de Cristo –, o leitor comum caminhará com dificuldades pelo emaranhado de citações e pela complexidade do raciocínio do autor que, afinal, é um professor universitário e quis deixar bem marcadas suas credenciais acadêmicas.
Kelly parece dirigir-se também aos católicos, mas neste caso seu êxito será menor, pois justamente ser católico consiste em crer, além da Bíblia, também na Tradição. Afinal, do mesmo modo que Kelly provou que Satã tal como os católicos o concebem não consta da Bíblia, também poderia ser provado que não consta da Bíblia o culto a seres humanos considerados santos e mesmo à Virgem Maria. Isso, porém, não abalaria a rigor nenhum católico, pois por definição este acredita, além de na Revelação, também na Tradição. Assim, o desmentido dado por Kelly à concepção corrente de Satã só vai valer para aqueles protestantes que julgam que a única fonte da fé é a Bíblia.

Renato Pompeu é jornalista e escritor.

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