9 de março de 2010

O que está vivo em Euclides da Cunha

Há tempo o Diário do Comércio, de São Paulo, me encomendou a seguinte resenha:

A verdadeira herança de Euclides da Cunha

Quase um quarto de século após ter sido realizada, é finalmente reproduzida em livro a mesa-redonda sobre Euclides da Cunha e seu livro seminal “Os Sertões” promovida em 1986 pela Editora Ática, com a participação do filólogo e especialista em literatura Antônio Houaiss, o jornalista Franklin de Oliveira, o pesquisador José Calasans, o médico Oswaldo Galotti, organizador da Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo. Atuaram também, como debatedores, os professores da USP José Carlos Garbuglio, Valentim Facioli e Walnice Nogueira Galvão, esta famosa por sua edição crítica de “Os Sertões” e por suas obras sobre Euclides, entre elas “No calor da hora”.
A edição do volume agora lançado, “Euclidianos e conselheiristas – um quarteto de notáveis”, organizado por Walnice Nogueira Galvão, não é da Ática, e sim da Editora Terceiro Nome, à qual foram cedidos os direitos. O curioso, mais de vinte anos depois, é que a mesa-redonda seguiu o mesmo destino de seu tema: como, mais de um século depois de ter sido lançado, “Os Sertões”, a mesa-redonda tem importância muito maior como contribuição cultural e como obra literária do que como ciência.
Ao contrário do que aconteceria numa mesa-redonda entre intelectuais americanos ou da Europa Ocidental, não ocorrem na discussão bem à moda brasileira debates mais acalorados entre os participantes, nem posições conflitantes. Trata-se menos de uma discussão do que de uma amável e amena tertúlia, no estilo dos antigos saraus lítero-musicais-doutrinários promovidos nos anos 1950 por intelectuais espíritas. Os participantes fazem um esforço deliberado para aparar as arestas entre si e chegarem a um consenso.
E qual é esse consenso? O de que, apesar de ter sido visto, no começo do século 20, como a última palavra da ciência sobre a condição humana, determinada pela herança biológica e racial de cada indivíduo e de cada grupo social, no fim daquele século, como agora, “Os Sertões” é muito mais visto como monumental obra literária, como uma verdadeira epopéia da evolução do povo brasileiro.
Fica bastante claro, nos debates, como as observações práticas de Euclides, sobre a fortaleza dos sertanejos, entram em contradição com suas teorias sobre a inferioridade racial dos índios e dos negros que estavam na raiz da mestiçagem que deu origem àqueles heróis anônimos dos sertões de Canudos. Fica bastante clara, na obra de Euclides, a importância crucial que a mestiçagem e a diversidade racial dariam ao povo brasileiro diante do mundo todo, apesar de a teoria de Euclides presumir que a mestiçagem só nos daria melhorias por implicar na maior presença do elemento branco e na diluição do sangue negro e índio na nossa população. Ao contrário, o elemento negro e o elemento índio são cada vez mais presentes e mais conscientes naquilo que constitui a brasilidade do País.
As leituras científicas de Euclides, que foram leituras racistas, foram atropeladas de um lado por suas observações de campo sobre a realidade efetiva da vida sertaneja, e de outro por sua sensibilidade criativa, sua sensibilidade literária, estética, artística. Nas tensas contradições de “Os Sertões”, os participantes da mesa-redonda e os debatedores puderam perceber como a visão “científica” de condenação da mestiçagem acabou se convertendo num poema épico em prosa de exaltação da mestiçagem.
Os participantes concordam que as verdades da ciência são mutáveis e nisso é que consistem a essência e a beleza da ciência. Por isso, as “verdades científicas” de “Os Sertões” estão superadas. Mas também concordam que a verdade de uma grande obra de arte é eterna. Por isso, a obra de Euclides é eterna.
O interessante, para demonstrar o caráter provisório das verdades científicas, é que os participantes citam, como alternativas verdadeiramente científicas para as explicações de Euclides sobre Canudos e sobre Antônio Conselheiro, as explicações marxistas sobre a sociedade brasileira. Hoje, se a obra máxima de Marx, “O Capital”, ainda serve de referência sobre a atual crise econômica mundial, as explicações marxistas elaboradas por seus discípulos e epígonos estão, como as “verdades biológicas” de Euclides, bastante fora de moda.

Renato Pompeu
rrpompeu@uol.com.br
www.renatopompeu.blogspot.com

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