O seguinte artigo foi publicado pela revista "Caros Amigos" no começo do ano:
Ca155memorias
Memórias de um jornalista não investigativo
“Eu sou do tempo em que ainda havia no Brasil alguns carros com a direção do lado direito”
Algumas reflexões
Renato Pompeu
Quando comecei a trabalhar no jornalismo profissional, em 1960 – em março serão 50 anos – cada atropelamento na já grande cidade de São Paulo era noticiado com rigor, resultasse em não em morte. Dava-se o nome da vítima e, quando fosse possível, a marca, o modelo, a cor e a chapa do carro e o nome de seu motorista. Naquele tempo, a grande maioria dos ônibus da cidade eram de uma estatal da Prefeitura, a Companhia Municipal dos Transportes Coletivos – CMTC, fundada na segunda metade dos anos 1940, e que só foi ter o seu primeiro desastre com vítima fatal no começo dos anos 1970, fato que teve enorme repercussão e causou um trauma na CMTC.
Hoje os jornais e emissoras de televisão praticamente não noticiam atropelamentos e as rádios, sem citar nomes, só noticiam os atropelamentos quando se tornam motivos de congestionamento e de aconselhamento aos motoristas para não passarem por ali. O que antes era uma homenagem a pessoas feridas ou mortas passou a ser agora um motivo de incômodos aos proprietários de carros. As notícias de atropelamento, cuja leitura era um momento de meditação sobre a precariedade da existência humana, agora são um momento de ainda mais irritação com a inacreditável bagunça do trânsito.
Quanto aos ônibus, tornaram-se todos particulares e os desastres com mortos são tantos que os nomes das vítimas nunca são noticiados e, do mesmo modo que os atropelamentos, os desastres são mais noticiados como focos de problemas no trânsito do que como tragédias em si.
Também, quando comecei a trabalhar, as notícias sobre ciência eram sempre submetidas a especialistas na área, como, na “Folha”, J. Reis. Hoje ainda existem alguns especialistas em ciência que nos dão informações de qualidade, mas já faz décadas reina um “terrorismo científico” em que o que vale é o caráter chamativo da notícia e não sua exatidão.
Por exemplo, nos anos 1990, eu trabalhava no “Jornal da Tarde”, o vespertino de “O Estado de S. Paulo”, e, diante da profusão de notícias das agências internacionais sobre a descoberta de genes disso e daquilo, por exemplo, o gene que causava a esquizofrenia, fui encarregado de fazer uma pesquisa sobre o assunto. Descobri que são raríssimas as condições causadas por um gene só; as características genéticas são na prática totalidade dos casos provocadas por complexas combinações de genes, sempre mutáveis, de modo que nem sempre a presença das mesmas combinações de genes coincidia com a presença da mesma característica, e vice-versa, nem sempre a mesma característica coincidia com as mesmas combinações de genes.
Meu artigo foi publicado com algum destaque na última página do primeiro caderno, mas não mereceu chamada de capa. Em compensação, naquele mesmo dia, na primeira página, foi dada com destaque a notícia: “Descoberto o gene da obesidade”.
Um comentário:
Lembro de um Livro seu, Memórias da loucura?, em que você dizia algo parecido, que os jornais deviam falar do acontecimento de cada bairro, de cada rua.
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