Recentemente saiu na revista Caros Amigos o seguinte artigo:
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Ideias de Botequim
Uma editora que resiste ao
neoliberalismo: a da UFRJ
Renato Pompeu
Praticamente ignorada pela grande mídia, a Editora UFRJ, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem lançado obras importantíssimas do ponto de vista progressista, pouco conhecidas até entre os intelectuais esquerdistas. A editora está sob a direção do eminente intelectual baiano radicado no Rio de Janeiro, Carlos Nelson Coutinho, um dos principais nomes no País do marxismo de linha humanista, isto é, mais preocupado com questões de ética social, da alta cultura e de bem-estar existencial do que com destrinchar os mistérios da economia política. Em outras palavras, mais preocupado com a problemática do Jovem Marx, do que com as questões enfrentadas pelo chamado Velho Marx.
Isso não quer dizer que as obras não enfrentem questões candentes da atualidade. Prova disso é o volume “Por um socialismo indoamericano”, com textos do famoso intelectual peruano José Carlos Mariátegui, considerado “o mais importante e inventivo dos marxistas latinoamericanos”, criador de um “marxismo herético” que “tem profundas afinidades com alguns dos grandes pensadores do marxismo ocidental: Gramsci, Lukács e Walter Benjamin”, pelo selecionador e organizador da obra, o bem conhecido intelectual marxista brasileiro radicado na França Michael Lowy. Mariátegui foi o fundador da fusão do marxismo e do socialismo com o indigenismo, hoje consagrada na prática em países como a Bolívia.
Outro livro de importância crucial da editora é “Marx (sem ismos)”, em que o professor universitário espanhol Francisco Fernández Buey procura resgatar o que Marx realmente disse, escreveu e propôs que fosse feito em relação ao que, após sua morte, foi dito, escrito e feito pelos que falaram e agiram em seu nome: “Deve-se distinguir entre o que Marx fez e disse como comunista e o que outros disseram, ao longo do tempo, no seu nome. (...) Seria uma injustiça histórica acusar o autor do ‘Manifesto Comunista’ pelos erros e delitos dos que, com boa ou má vontade, continuaram utilizando seu sobrenome”.
Em “Sociedade civil e hegemonia”, o professor cubano, atuante em seu país, Jorge Luis Acanda, procura discutir a atualidade da herança do pensador e militante comunista italiano Antonio Gramsci. O catálogo editorial escolhido por Coutinho é particularmente enriquecido pelo clássico “O jovem Marx e outros escritos de filosofia”, do eminente pensador húngaro Gyorgy Lukács, que defende a tese de que a liberdade não é inata, mas “é o produto da própria atividade humana, a qual, embora sempre engendre concretamente algo diferente daquilo que se propusera, termina por ter consequências que ampliam, de modo objetivo e contínuo, o espaço no qual a liberdade se torna possível”.
Outra reedição de obra clássica, agora brasileira, é “Cangaceiros e fanáticos – gênese e lutas”, de Rui Facó, que discute o cangaço e o fanatismo religioso como reações ao tratamento como semiescravos que as classes dominantes agrárias continuaram reservando aos pequenos camponeses e trabalhadores em geral do campo depois da Abolição da escravidão.
E mais um ponto alto do marxismo heterodoxo é “Marxismo e filosofia”, do alemão Karl Korsch, que entre as duas Guerras Mundiais defendeu que a luta filosófica contra a consciência burguesa é tão importante quanto a luta econômica, social e política contra o capitalismo. Convém notar que, bem depois dessa importante obra, inspiradora até hoje entre os marxistas de linha humanista, Korsch se tornou anticomunista e militou na Guerra Fria em defesa dos Estados Unidos.
Também são importantes “Heidegger e a destruição da ética”, do filósofo e teólogo brasileiro Alexandre Marques Cabral, em coedição com a Editora Mauad, e “Para além dos direitos – Cidadania e hegemonia no mundo moderno”, em que o professor também brasileiro Haroldo Abreu procura demonstrar que “a cidadania jamais foi limitada à sua constituição formal”. Um estudo mais empírico é “Os arquitetos da memória – sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940)”, da historiadora Márcia Regina Romeiro Chuva.
O espaço de Ideias de Botequim nos permite apenas citar os títulos e autores de outras obras muito interessantes e muito importantes do catálogo da Editora UFRJ: “Dialética e materialismo – Marx entre Hegel e Feuerbach”, dos pensadores brasileiros Benedicto Arthur Sampaio e Celso Frederico; “Democracia ou bonapartismo”, do teórico italiano Domenico Losurdo, “reconstrução histórica da luta pela conquista dos direitos civis, políticos, econômicos e sociais”; “Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais”, organizado pelo professor canadense nascido na Grã-Bretanha Stephen Gill; “Arte e sociedade – escritos estéticos, 1932-1967” e “Socialismo e democratização – escritos políticos, 1956-1971”, ambos de novo de Gyorgy Lukács; “Revolução e democracia em Marx e Engels”, do pensador francês Jacques Texier, e “Roteiros para Gramsci”, do professor italiano Guido Liguori.
Em suma, pode-se dizer que a linha intelectual da Editora UFRJ obedece ao lema: “Sem democratização não há socialismo, sem socialismo não há democratização”.
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