24 de novembro de 2010

A falta (ou excesso) de planejamento do trânsito em São Paulo

Há poucos meses o Diário de S. Paulo me encomendou o seguinte texto:

Confusão entre dois tipos de redes viárias agrava o congestionamento, diz urbanista


As origens dos congestionamentos de trânsito em São Paulo datam do desenvolvimento sem freios da indústria automobilística e da preferência ao transporte particular a partir dos anos 1960. Mas justamente os congestionamentos se agravaram, diz o professor Candido Malta Campos Filho, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, por causa da hesitação demonstrada pelo então prefeito Faria Lima, em 1968, entre dois tipos de desenvolvimento urbanístico: o radiocêntrico, de inspiração europeia, especialmente alemã, e o policêntrico, de inspiração americana.
Na época, Faria Lima chamou uma equipe alemã, da empresa Hochtief, e uma equipe americana, para elaboração do Plano Urbanístico Básico. A empresa alemã recomendou o sistema radiocêntrico, em que vias partem do centro rumo à periferia, cortadas por anéis sucessivos de avenidas radiais. Nesse sistema, é facilitado o transporte coletivo, como o metrô, pelo adensamento das áreas centrais.
Mas a equipe americana propôs o sistema policêntrico. Nele, vias expressas paralelas e transversais, distantes umas das outras, se cortam em pontos estratégicos, em tabuleiro. Nos pontos de intersecção se instalam grandes zonas comerciais, principalmente hipermercados; nos espaços intermediários entre as vias expressas se instala uma urbanização secundária, predominantemente residencial. Esse é o esquema, por exemplo, de Los Angeles, muito mais favorável ao transporte por automóveis particulares do que ao transporte coletivo.
Faria Lima adotou um sistema misto, nem plenamente favorável ao transporte coletivo – pela falta de adensamentos centrais que tornassem viável uma grande rede de metrô –, nem plenamente facilitador do transporte individual. Com isso, o núcleo central da cidade já nos anos 1970 ficou congestionado e o resultado foi duplo: de um lado a classe média se instalou em condomínios distantes, como Tamboré-Alphaville e Cotia; de outro lado, os conjuntos habitacionais populares, antes construídos em bairros tradicionais, passaram a ser erguidos cada vez mais longe, na periferia. Exemplo disso: a Cidade Tiradentes, de cuja implantação Candido Malta participou, como integrante, nos anos 1970, da gestão Olavo Setúbal.
O professor destaca que, nas duas situações, o fundamental foi o preço. Quanto à classe média, queria morar bem, e também queria morar longe dos congestionamentos, mas não estava em condições de pagar por imóveis nos Jardins, ou no Morumbi. O preço mais barato dos loteamentos mais distantes, em Tamboré-Alphaville e Cotia, resolveu a questão. Quanto à instalação dos conjuntos habitacionais populares na periferia, as camadas por eles beneficiadas não estavam – como não estão até hoje, diz Candido Malta – em condições de pagar por terrenos nas zonas mais tradicionais.
No entanto, tanto os moradores dos condomínios, como os dos conjuntos habitacionais populares nas periferias, têm em grande número de deslocar-se diariamente rumo a empregos nas zonas mais centrais. Isso porque, “apesar de Tamboré-Alphaville e as periferias pegarem as sobras das atividades centrais, o centro principal sempre será melhor”, diz Candido Malta. Segundo ele, esse centro principal, em São Paulo, vem se estendendo entre a avenida Paulista e os bairros de Pinheiros e de Santo Amaro, o chamado centro expandido, embora o centro histórico ainda conte com polos de atração como o Teatro Municipal e o Fórum. O resultado da hesitação de Faria Lima é que hoje nem há uma rede eficiente de transporte coletivo, nem há um sistema de vias expressas capaz de dar vazão ao transporte individual.
Mas há ainda mais dificuldades. Um dos grandes problemas da cidade, enfatiza Candido Malta, é que, apesar dos congestionamentos no antigo centro, que o degradam e que levam à saída de seus moradores, ali os preços dos imóveis não baixam, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos. Nas cidades americanas, o centro tradicional também ficou congestionado e foi abandonado pela classe média, mas os terrenos centrais, por isso mesmo, baixaram de preço, possibilitando a instalação das camadas mais pobres, como negros e hispânicos. Estranhamente, em São Paulo o preço dos terrenos nas zonas degradadas não baixou, mesmo não havendo procura – os proprietários, mesmo pagando IPTU, preferem manter seus imóveis na zona central vazios, à espera de possíveis planos de revitalização, tipo Nova Luz.
Hoje não se aceita mais a construção de grandes conjuntos habitacionais populares nas periferias, havendo uma preferência por pequenos conjuntos em zonas já urbanizadas. Esse é o objetivo das ZEIS-Zonas Especiais de Interesse Social. “Mas as ZEIS não estão dando certo” – salienta Candido Malta –, “porque o preço do solo urbano está subindo. Nos últimos meses, o preço do solo urbano em São Paulo subiu 40 por cento e, no ABC, 50 por cento. O alardeado sucesso do mercado imobiliário é sucesso para quem vende, não para quem compra. Triunfa um patrimonialismo em que o patrimônio se valoriza mais e mais, sem que se abra o acesso ao patrimônio a quem não o tem”.
A cidade corre um risco se não tiver um Plano Diretor a longo prazo, de 30 ou mais anos, ao invés dos dez anos que são o horizonte do atual PD, defende Candido Malta. Em outras palavras, o centro expandido, como já aconteceu com o centro histórico, pode igualmente ficar congestionado e se tornar uma zona de repulsão de seus moradores. Uma das maneiras de evitar isso seria a readoção, em outras formas, do pagamento, pelos proprietários e construtores, de taxas pelo solo criado, adotado na gestão de Setúbal e depois abandonado, por pressão dos proprietários e dos incorporadores.
A explicação: quando se constroem prédios altos no centro, é preciso que os proprietários e construtores paguem taxas cada vez maiores quanto maior for o solo que “criarem”, isto é, o número de andares. Atualmente os proprietários e construtores podem erguer prédios tão altos quanto queiram, indiferentes, por não terem maiores ônus, ao fato de existir ou não nas zonas circundantes uma capacidade de suporte para a movimentação de veículos tanto mais intensa quanto mais altos sejam os prédios.
O processo de congestionamento do centro histórico começou há 50 anos e não pode ser combatido, agora que se estende ao centro expandido, por um Plano Diretor com horizonte de apenas dez anos, postula Cândido Malta. Por isso mesmo ele está assessorando projetos de vereadores na Câmara Municipal que estendem a vigência do Plano Diretor para pelo menos 30 anos, como já acontece em Londres e Paris, onde não existem problemas urbanos tão graves quanto em São Paulo.
Uma outra questão é a chamada “retenção especulativa”. Trata-se justamente do processo pelo qual os proprietários preferem deixar seus imóveis vazios, à espera de revalorização. Contra isso, diz o professor, o remédio é o IPTU progressivo no tempo. Outro remédio é a “outorga onerosa”, prevista na Constituição Federal, que vem a ser mais ou menos a mesma coisa que o “solo criado” da gestão Setúbal – uma cobrança maior de taxas quanto mais alto for o prédio. Candido Malta chama ainda a atenção para que houve uma confusão: o chamado Plano Diretor, aprovado em 2002, na verdade é uma legislação que estabelece diretrizes e políticas urbanas; e a chamada Lei Complementar, de 2004, é que o verdadeiro Plano Diretor da cidade.
Ele esclarece que uma coisa é estabelecer regras gerais – Lei de Diretrizes e Políticas Urbanas, outra coisa é aplicar essas regras gerais a situações concretas – Plano Diretor: “O povo não faz essa confusão – chama de Plano Diretor o zoneamento concreto da área que interessa a cada setor da população”, diz ele. E acrescenta: “O que está em discussão atualmente na cidade não é o Plano Diretor, sim as diretrizes e políticas urbanas mais gerais”.

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