22 de janeiro de 2011

Lembranças do Rio antigo

Recentemente o Diário do Comércio de São Paulo me encomendou o seguinte artigo:

Evocações do Rio antigo, nas


lembranças de um jornalista



Renato Pompeu



Um brinde encantador: o jornalista, escritor, sociólogo, cineasta, homem de televisão dramaturgo e muitas coisas mais, Henrique Veltman, 73 anos, nos presenteia com essa edição de autor, “Do Beco da Mãe a Santa Teresa”, crônicas memorialísticas em que retraça sua trajetória, a partir da infância como menino judeu de classe média baixa no bairro de São Cristóvão, Zona Norte do Rio, até sua ascensão profissional e social.

Acompanhamos a evolução dos hábitos e costumes cariocas, não faltando no Carnaval jovens judeus que desfilavam cantando marchinhas em ídiche, nem os refrescos de pistache e soda vendidos em quiosques próximos dos pontos de bonde, ícones dos anos 1940 e 1950. Vemos, com olhos fascinados, as transformações da sociedade de consumo, desde seus inícios modestos, como os programas de auditório de perguntas e respostas, com que os jovens judeus, bastante estimulados a estudarem, complementavam suas parcas, ou mesmo inexistentes, mesadas, com os ganhos ao acertarem invariavelmente as respostas às perguntas, até serem expulsos dos programas como “arroz de festa”.

Ouvimos os brados de “São Cristóvão! São Cristóvão”, com que um morador de rua um tanto amalucado, décadas depois, ainda comemorava diariamente a conquista do único título carioca pelo São Cristóvão de Futebol e Regatas, em 1926 – e mais: uma preciosa ilustração nos comprova que a bóia, a âncora e os remos do distintivo do Corinthians Paulista estão presentes também no distintivo do time alvo da Zona Norte do Rio.

Vemos como era forte a presença do comunismo entre os meninos judeus de seis décadas atrás, já que nele eram iniciados ainda no começo do secundário. Tinham passado pela experiência das revelações sobre o Holocausto, das notícias sobre a tomada de Berlim pelas tropas soviéticas, da fundação do Estado de Israel. E vemos também como esses jovens judeus passavam do sonho de um Estado judeu socialista para o sonho de um socialismo para todos os povos. Mais tarde, verificam que o sonho comunista tinha muito de pesadelo, mas guardaram dessa experiência a integração à sociedade brasileira, ao invés de ficarem confinados num gueto judaico, como acontecia na Europa Oriental, de onde eram provenientes, na sua maioria, os seus pais e avós.

Veltman sente nostalgia de sua infância e adolescência, períodos entretanto em que o dinheiro era curto e as diversões eram modestas – a frequência aos programas de rádio, os jogos de futebol a que os jovens assistiam, a curtíssima semana de férias que podiam passar na Serra, os passeios de bonde até pontos do Rio em que a natureza ainda predominava.

Ficamos sabendo que a presença judaica era tão marcante na paisagem popular do Rio de Janeiro que, só na famosa e tão decantada Praça Onze, havia várias sinagogas. E acompanhamos as contribuições de jovens judeus para a consolidação da indústria cultural carioca e, por extensão, nacional. Jornalistas, radialistas e homens de televisão judeus estiveram empenhados, por exemplo, na introdução de revistas especializadas em rádio, que foram tão populares nos anos 1940 e 1950, e na introdução de novelas na televisão, sucessos que desfilam a nossos olhos desde então.

Nos bairros populares, nos anos 1940 e 1950, a convivência entre vizinhos era tão forte e tão marcante que todos ouviam quando o marido português surrava a esposa, ou quando de uma casa ressoavam os gemidos do sexo. A integração dos jovens judeus com a sociedade brasileira era tão forte, para surpresa de seus pais e avós acostumados à guetização na Europa Oriental, que, além de os próprios jovens judeus cantarem marchinhas de Carnaval em ídiche, também seus jovens amigos negros brasileiros aprendiam a falar ídiche e cantavam nessa língua canções judaicas de tradições seculares.

A integração era tão acentuada que o menino Henrique comemorava seu aniversário em junho na festa de São João que os seus vizinhos não-judeus organizavam na vila em que tantas famílias judaicas moravam, vila que vem a ser justamente o Beco da Mãe consagrado pelo título do livrinho encantador.

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