12 de fevereiro de 2011

Resenha sobre Marina Colasanti

Recentemente o Diário do Comércio de São Paulo me encomendou a seguinte resenha:

Literalmente fabulosos, os


contos de Marina Colasanti



Renato Pompeu



Esses “Contos de amor rasgados”, da escritora Marina Colasanti, italiana radicada no Rio e que há décadas encanta as letras brasileiras com poemas e textos em prosa altamente imaginativos, lançados pela Record, são literalmente fabulosos, no sentido de que são fábulas em que os personagens são seres humanos, fábulas maravilhosas cheias de magias e metamorfoses.

Fogem assim ao padrão usual do gênero, que para os adultos costuma ser de um realismo bem imitativo da vida cotidiana. Marina Colasanti parte da apresentação de pessoas comuns e da descrição de ambientes bem conhecidos de todos, para desenhar situações absolutamente fantásticas, em que seres humanos dialogam com coisas e com animais, ou se transformam nesses outros seres, voam, entre a ficção mística, mais do que científica, e os contos de fadas.

Por outro lado, inusitada é também a forma perfeitamente trabalhada dessas elaborações. São cerca de cem contos em pouco mais de duzentas páginas, isto é, são contos curtos intensamente densos; alguns são verdadeiros aforismos, na forma consagrada pelo pensador francês Pascal, do século 17, e pelo pensador alemão Nietzsche, do século 19 – a essas alturas de profundidade e de imaginação chegam essas obras de Marina Colasanti.

Mais do que prosa poética, Marina Colasanti pratica aqui verdadeiros poemas, destilados como se fossem gotas de perfume, ou goles do leite da mulher amada, ou cálices de um licor inebriante. São na maioria histórias de amor que bradam ternura e encanto, ou vão enrodilhando o leitor ou a leitora num ronronar aveludado, até que de repente o remate surpreende, encanta ou assusta.

“Perdida estava a meta da morfose”, diz o título de um dos minicontos, e isso poderia servir de epígrafe à obra toda, pois invariavelmente a meta de cada personagem é fugidia e escorre entre os dedos como água ou areia. Todos os contos são metamorfoses, de diferentes maneiras, às vezes efetivadas, às vezes só imaginadas.

Por trás das metamorfoses, por trás das mudanças, está sempre o tempo, o principal personagem de Marina Colasanti nesses contos de amor bem rasgado. Aqui podemos especular: se não houvesse mudanças, se tudo ficasse sempre eternamente igual, se poderia conceber a existência do tempo? Afinal, o tempo é uma característica imanente à natureza – ou é uma simples maneira de avaliarmos a sucessão de mudanças que observamos no mundo à nossa volta? Os contos chegam a inverter a linha do tempo: um personagem nasce velho e vai remoçando na medida em que os anos passam, da idade madura passa à juventude, até morrer como bebê. O tempo nesse livro é como se fosse um Ano Velho vestido de fralda, ou um Ano Novo de cajado na mão.

A autora é mágica. Começa um conto assim: “Comprou a esposa numa liquidação”. Seria uma alegoria, ou ela está narrando um fato verossímil? Afinal, comprar esposas não é novidade, mas... numa liquidação? A interpretação mais rasteira é de que algum homem comprou uma boneca inflável – mas Marina Colasanti não faz esse tipo um tanto simplório de ficção – pelo contrário, tem o requinte de um Da Vinci ou um Michelangelo. Ela está narrando pelo prazer de narrar, pelo prazer de expressas frases bem bordadas, de altas estesias sonoras, e de conteúdos também macios.

Dá nova vida a situações clássicas cristalizadas pelo tempo do imaginário, como a história do sapo que vira príncipe, em seu texto virtuosamente metamorfoseado..

Notem-se as tonalidades do final de outro conto: “Agarrou-se náufraga na alça”. Prosa poética? Não, poesia diagramada na página como se fosse prosa. O livro está assim cheio de frases belas como os vestidos do Reino das Águas Claras de Monteiro Lobato, costurados com fios de água enfiados na agulha.

Em suma, Marina Colasanti escreve como o americano Jackson Pollock pintava. Assim como o criador da “action painting” parecia jogar ao acaso as tintas sobre o chão, ela parece jogar ao acaso situações que, em mãos menos experientes e menos cuidadosas, pareceriam sem pé nem cabeça. Ela pode ser considerada a criadora da “action writing”.

Nenhum comentário: