22 de maio de 2013

A poesia como salvação, por Octavio Paz

A resenha abaixo foi encomendada pelo Diário do Comércio de São Paulo: - A poesia como salvação, pelo poeta Octavio Paz - Renato Pompeu - Eis aqui uma obra que o leitor deve ler em atitude de prece, tendo à frente o livro inclinado como nas igrejas, balbuciando de si para si, como se as estivesse beijando, cada palavra entoada como se fosse num cântico. Trata-se de “O arco e a lira”, uma grande ensaística sobre os significados mais profundos da poesia, elaborada pelo grande poeta, ensaísta e pensador mexicano Octavio Paz (1914-1998), Prêmio Nobel de 1990, publicada no original em 1967, agora lançada no Brasil pela CosacNaify em conjunto com o Fondo de Cultura Económica, célebre editora do México Pois para Paz – e ele nos convence disso – a poesia é uma religião, uma fé do tipo mais evoluído de religião que a humanidade desenvolveu, o salvacionismo. Pela poesia, diz Paz, salvamos a nossa alma, libertando-a das peripécias de cada vida humana, esta sempre regida por acidentes e pelo sofrimento, pela ilusão dos prazeres dos sentidos. Senão um meio de alcançar a Deus, um poema é um meio de nos aproximarmos e nos identificarmos com o que temos de mais íntimo, mais essencial e menos contingencial em nós mesmos. Imbuídos do significado de cada poema em particular, que é o mesmo significado da poesia em geral, nos salvamos das misérias deste mundo e nos aproximamos do que há de mais puro dentro de nós, o que vem a ser, afinal de contas, a essência do ser, a alma da própria matéria. Como em toda religião, na religião poética de Paz, a salvação, que vem a ser um estado de transcendência, ou seja, de desligamento em relação ao que há de inautêntico na vida, as suas peripécias ilusórias, e de identificação com o que há de mais perfeito em cada um de nós, tem de ser alcançada por meio de um ritual, que é desempenhado num primeiro momento pelo sacerdote e em seguida assimilado pelo crente. O sacerdote dessa religião é o poeta, que se identifica com a essência do seu ser e do ser em geral, no momento em que cria o poema – e elaborar um poema é um ato que exige compunção e contenção. O crente é o leitor do poema, no momento em que realmente compreende o poema, ou melhor, o “sente”, momento em que o leitor alcança o mesmo estado de graça que o autor tinha atingido ao criar o poema. Tal concepção da poesia está, de um lado, aparentada com as religiões salvacionistas orientais, que Paz tanto estudou e conheceu, principalmente o hinduísmo e o budismo; de outro lado, com o surrealismo que ele conheceu de perto e praticou; e finalmente, numa terceira vertente, com as filosofias existencialistas do alemão Martin Heidegger e do francês Jean-Paul Sartre. Mas o principal é que essa poética transcendentalista está ligada à própria mexicanidade de Paz, que ele tanto evocou em sua obra mais conhecida, “O labirinto da solidão”, de 1950, uma dissertação sobre a solidão em que, no fundo, vive cada ser humano, e em particular cada ser humano mexicano, deserdado de sua cultura mais ancestral, a indígena. Se naquela obra Paz havia diagnosticado o que podemos considerar o mal-estar característico do ser humano, a sua solidão, em “O arco e a lira” ele como que nos apresenta a terapêutica, a salvação pela poesia. Mas, como todo tratamento terapêutico tem suas regras próprias (e como todo estado religioso, mesmo os mais extáticos, exige uma ritualística específica), o livro de Paz também discute as técnicas do fazer poético. Assim, a par de discorrer sobre o momento em que ultrapassamos as contingências da vida para atingir a essência do ser, ele discute também em que consiste a essência da poesia, por exemplo; o ritmo é essa essência? Poderia haver poesia sem ritmo? Só o ritmo já garante a poeticidade? Paz nasceu na Cidade do México, numa família da alta sociedade; seu pai havia sido um político influente na Revolução do começo do século 20. Mas depois a família empobreceu – o futuro Nobel chegou a viver num quarto em que uma das paredes era apenas uma cortina que não protegia das intempéries lá fora – e ele acabou sendo criado por tios no interior. Publicou seus primeiros poemas em 1933, aos 19 anos, e foi logo lutar pelos republicanos na Guerra Civil Espanhola, desiludiu-se com as atrocidades cometidas por ordem de dirigentes republicanos, e radicou-se em Paris, onde se irmanou artística e politicamente com os surrealistas, esquerdistas que, ao contrário da maioria dos esquerdistas da época, atacavam duramente os métodos repressivos do líder soviético Iussuf Stalin e seus adeptos. Interessado pelas culturas orientais, morou no Japão para estudar. Embaixador na Índia, em 1968 renunciou ao cargo, em protesto contra o chamado massacre de Tlatelolco, em que centenas de estudantes esquerdistas foram chacinados por soldados governamentais durante manifestação nessa praça da capital mexicana. Era, rigorosamente, um idealista, como mostra em “O arco e a lira”.

2 comentários:

Ana Claudia Dantas disse...

"O poema é um tecido de palavras perfeitamente datáveis a um ato anterior e a todas as datas."
(P. 226, ed. Nova Fronteira, Trad. Olga Savary)
Eu adoro essa definição.

Ana Claudia Dantas disse...

"Recitar versos é como dançar com o movimento total de nosso corpo e o da natureza" (p. 362). Tb penso assim, não é outra coisa senão isso mesmo.