24 de maio de 2013

Atualização da "Riqueza do Homem"

A revista Retrato do Brasil me encomendou a seguinte resenha: A riqueza mundana do ser humano, revisitada - Renato Pompeu - A principal virtude da 22.a edição em português do livro “História da riqueza do homem”, do militante socialista americano Leo Huberman (1903-1968), intitulada “História da riqueza do homem – do feudalismo ao século XXI” e publicada pelo GEN-LTC, é sua ampliação pela historiadora brasileira Marcia Guerra. Com efeito, o original em inglês, cujo título, traduzido literalmente, é “Os bens mundanos do homem – História da riqueza das nações”, foi lançado em 1937 e nunca foi atualizado por Huberman, muito embora ele tenha escrito exaustivamente sobre situações suas contemporâneas em livros e em artigos para a famosa revista marxista americana “Monthly Review”, da qual foi fundador em 1949. Ele chegou a discutir em outros textos a Segunda Guerra Mundial, a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, mas “História da riqueza do homem” se encerra com as primeiras medidas do governo nazista na Alemanha. Na atual edição, entretanto, Marcia Guerra completa com muita precisão o período que vem desde a Segunda Guerra até os dias atuais, embora seu texto não seja tão agradável quanto o de Huberman, que tinha grande experiência em iniciar, na economia política e na luta pelo socialismo, tanto trabalhadores sem maior escolaridade quanto jovens militantes provenientes de outras classes. Se não fosse pelos acrescentamentos da historiadora brasileira, quase se poderia dizer que hoje em dia a vida de Leo Huberman proporciona muito mais lições do que o seu livro. Este, tal como foi escrito e é reproduzido na nova edição (com exceção dos dois capítulos finais, de autoria de Marcia Guerra), está desatualizado, a começar do título, que fala em “homem”, quando hoje seria de rigor falar em “ser humano”, para incluir também as mulheres. O livro de Huberman segue o esquema consagrado pelo chamado marxismo vulgar, pois começa com o feudalismo, assinala a transição para o capitalismo, comenta a plena vigência deste, e menciona a sua futura transição “inevitável” para o socialismo. Ou seja, está rigorosamente preso apenas ao Ocidente, de modo que essa “História da riqueza do homem” omite a história, as riquezas e os seres humanos da esmagadora maioria do planeta. Na verdade, a própria história do Ocidente, como a conta Huberman, está escrita apenas sob a óptica dos homens brancos. Ele sequer menciona o papel crucial da escravidão colonial nas Américas para a acumulação primitiva de capital na Inglaterra e em outros países pioneiros do capitalismo. Na verdade, apenas menciona os escravos para explicar que os servos do feudalismo não eram escravos. Felizmente, Marcia Guerra não incorre nesse tipo de falhas e o que há a lamentar é que ela não tenha atualizado e revisto todo o livro, ao invés de apenas comentar os períodos que ele não cobre. Mas, considerando as suas limitações – apontadas pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Francisco Carlos Teixeira da Silva, citado no prefácio de Marcia Guerra, quando Teixeira da Silva diz que o rigor de Huberman “mostrou-se teleológico e pré-construído, buscando uma explicação a posteriori de fatos e processos pré-escolhidos” – o livro do autor americano ainda demonstra alta qualidade como obra de iniciação para trabalhadores e jovens. Conclui o próprio Teixeira da Silva: “De toda forma, o livro permanece como parte fundamental do pensamento marxista no Ocidente, uma opção progressista em sua época, antipositivista e antistalinista”. Pois Huberman não escreveu um livro abstrato e rarefeito, complicado e exigente, como, por exemplo, “O capital”, de Karl Marx. Ao mesmo tempo em que ele tentou explicar com um mínimo de rigor a história pela economia, e a economia pela história, o escritor americano, com sua experiência de professor e de jornalista, de autor de panfletos e manifestos, de instrutor em cursos patrocinados por sindicatos, produziu uma obra agradável, encantadora, emocionante, bem-humorada, como se fosse um romance. Sentimo-nos na pele dos servos trabalhando na gleba, dos primeiros operários em instalações sombrias e insalubres, em que até crianças de dois anos enfrentam jornadas exaustivas; somos transportados às mesas dos banqueiros medievais, aos grandes salões burgueses. Também nos faz sentir na pele a exploração de milhões de seres humanos por uns poucos capitalistas. Para entender como o autor conseguiu todo esse encanto e todo esse mínimo de rigor, precisamos saber quem era Leo Huberman. Ele nasceu em 1903, em Newark, no Estado de Nova Jersey, perto de Nova York, como o penúltimo de onze filhos – dos quais seis morreram antes de Leo nascer – de um casal de trabalhadores intelectuais (professores) que ascendeu à classe média. Até os 16 anos, estudou em escolas públicas de sua cidade natal, e desde os 11, trabalhou nas férias de verão ou à noite como operário numa fábrica de celuloide, mensageiro numa corretora de ações, vendedor do refrigerante Nedick de laranja, operário numa fábrica de vidro, ajudante de eletricista, balconista numa agência do Correio e também conferiu textos numa agência telegráfica. Continuando os estudos, aos 18 anos se formou pela Escola Normal Estadual de Newark, e começou a dar aulas como professor primário. Aos 22 anos, em 1925, se casou com uma colega do secundário, também professora primária, Gertrude Heller, e na lua-de-mel viajaram de carona entre a Costa Leste e a Costa Oeste. Depois, dava aulas no primário e de inglês para estrangeiros em Newark e viajava à noite para Nova York. Ali cursava a Universidade de Nova York, onde se formou em economia e história econômica em 1926. No mesmo ano, o casal mudou para Nova York, onde Huberman se tornou professor numa escola particular mantida por ativistas radicais, a Escola da Cidade e do Campo, que praticava um ensino progressista, transmitindo aos alunos não apenas conhecimentos, mas também o amor pela pesquisa, pelo entendimento das questões (isto é, não se exigia a decoração de textos), e ainda a atitude de cada aluno de tomar decisões sobre a sua própria vida. Huberman passou as noites daqueles anos escrevendo “Nós, o povo”, uma audaciosa história dos Estados Unidos escrita do ponto-de-vista dos trabalhadores, publicada em 1932 e que foi um êxito de público. Sua editora, então, encomendou um livro didático de história geral, que viria a ser a “História da riqueza do homem”. Ele foi para Londres, estudar na Escola de Economia de Londres e no Museu Britânico. Voltou aos Estados Unidos para o lançamento, na passagem de 1936 para 1937. Cumpre notar que tanto “Nós, o povo”, como “História da riqueza do homem”, foram escritos inicialmente para jovens, sendo revistos depois para se tornarem livros para adultos. Acabaram servindo para a formação de militantes sindicalistas, trabalhistas, socialistas e comunistas, tanto nos Estados Unidos como em outros países (como o Brasil do terceiro quarto do século 20), devendo se notar que aqueles anos, em meio à Grande Depressão da década de 1930, eram particularmente ricos em ativismo de esquerda, mesmo nos EUA. Bastante ativo, enquanto escrevia livros sobre temas como a contratação de bandidos pelas grandes empresas para atacarem sindicalistas, ou a história econômica americana, Huberman se tornou professor na prestigiosa Universidade de Columbia e também, contratado pelo Sindicato Nacional dos Marítimos, organizou cursos e bibliotecas nos porões de dezenas e mesmo centenas de navios, além de ter dado cursos em outros sindicatos e para militantes políticos. Em 1949, ele e sua mulher Gertrude, além de Paul Sweezy, lançaram a revista “Monthly Review”; a redação era no apartamento do casal Huberman. Sozinho, ou com Sweezy, escreveu livros e artigos sobre o caminho para o socialismo, a política externa americana, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, a segregação racial nos Estados Unidos. Editou os livros seminais “A economia política do desenvolvimento”, de Paul Baran, e “O capital monopolista”, de Baran e Sweezy. Huberman, com a mulher ou também em companhia de Sweezy, viajou por todo o mundo, sendo de particular importância suas viagens pela China e por Cuba. Além de todas essas atividades, gostava de conversar enquanto passeava, e de jogar tênis e pôquer. Morreu no emblemático ano de 1968. Ele soube transportar todo o colorido de sua vida para as páginas de “História da riqueza do homem”. Na verdade, mais do que em seu arcabouço teórico, um tanto limitado pela visão estreita da contribuição de Marx que tiveram praticamente todos os autores marxistas do século 20, com a grande exceção de Vladimir Lenin, o livro sobrevive pelas cenas tão maravilhosamente pintadas que dá da vida cotidiana dos trabalhadores desde o feudalismo até o capitalismo da fase que Huberman considerava como monopolista. Que se repita: além das agradáveis descrições tão vívidas pelo autor americano de cenas do cotidiano das lutas de classes, a contribuição maior da nova edição é de Marcia Guerra, que narra com mão de mestre o auge e o colapso do Estado de Bem-Estar Social, o auge, a decadência e o colapso do comunismo, o auge e a crise do neoliberalismo, e a ascensão da China. No mais, cumpre notar que a própria “Monthly Review”, na sua edição eletrônica, atualmente defende regimes antioperários, como os do Irã e a Síria, apontados como anti-imperialistas. Quando justamente Huberman encerra o seu livro com uma crítica contundente ao nazifascismo, sem se deixar iludir pelo fato de que Hitler e Mussolini combateram incansavelmente, até a loucura, o imperialismo anglo-saxão e francês.

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