23 de maio de 2013

A poesia de Mariana Ianelli

A seguinte resenha foi encomendada pelo Diário do Comércio de São Paulo: A poesia de Mariana Ianelli e sua musicalidade fragmentada, que compõe um todo inefável. - Renato Pompeu - Desde sua estreia em 1999, aos 20 anos, e desde que começou, por volta dos 25 anos, a alcançar a maturidade técnica propriamente dita, a poeta paulistana Mariana Ianelli, 33 anos, tem avançado decisivamente no rumo de uma maior musicalidade, em relação ao reconhecido prosaísmo de suas primeiras obras, e no sentido de uma maior riqueza nos significados de suas transmissões, que se tornam cada vez mais complexos. O preço a ser pago por esse progresso não só técnico como do que se pode chamar de conteúdo é uma bem maior exigência imposta ao leitor, como é o caso do conjunto de composições curtas constituído pelo volume “O amor e depois”, lançado no ano que passou pela Iluminuras (como todos os seis livros anteriores da autora). Ainda mais porque um aproveitamento pleno de seus belos versos, que se apresentam como um calidoscópio de fragmentos sonoros, e não como uma sinfonia monista que se desdobrasse em variações a partir de um tema minimamente uniforme, exige, além de um mínimo de treino em leituras poéticas requintadas, também uma sensibilidade toda especial para poder alcançar o que ela quer expressar. Paradoxalmente, o que Mariana Ianelli expressa com suas palavras e suas frases privilegiadas, não pode ser expressado em palavras, pelo leitor, pelo resenhista ou pelo crítico. Assim, o privilegiado é o leitor, pois, ao contrário do resenhista ou do crítico, ele não precisa expressar em palavras o que os versos nele provocam. Pois o que os versos deste livro expressam são estados de espírito, ou mais exatamente estados d’alma, surpreendentemente emanados a partir de embates dos sentidos com realidades materiais, evocadas de modo que se transformem, de fatos “reais” externos que lidam com o corpo, em impressões fugidias – de modo que o que nos chega ao conhecimento racional são situações ambíguas, ou melhor, que surgem a partir de sensações fronteiriças, ou paisagens vagamente esfumadas. Mas o importante é o que nos chega ao conhecimento emotivo. Tentemos assimilar o que Mariana Ianelli busca comunicar, por exemplo, no poema que abre a edição, “Neste lugar”: “Nenhum traço de delicadeza/ Só palavras ávidas/E o tempo,/A devoração do tempo.//Um jardim entregue/às chuvas e aos ventos.//O que para os cães/É febre de matança/E para um deus/Um dos seus inúmeros/Prazeres.//Caminhos de sangue,/Onde reina o amor primeiro./Morada de súbita/Ausência de medo.//Um despenhadeiro, o céu/E uma queda/Sem alívio de esquecimento.” O título “Neste lugar” e a referência “um jardim entregue às chuvas e aos ventos” (um prosaísmo suavizado pela insistência final no “v” de “chuvas” e de “ventos”) parecem indicar uma paisagem física. Mas é uma paisagem de “caminhos de sangue” (uma inovadora expressão particularmente poética), “onde reina o amor primeiro” (um prosaísmo poetizado pela ambiguidade entre os significados “onde reina o primeiro amor” e “onde o amor reina primeiro”). Ou seja, é uma “paisagem onde reina o amor”, sendo o amor, segundo a própria autora, a grande força motriz de sua poesia. No entanto, nessa paisagem “onde reina o amor primeiro”, não há “nenhum traço de delicadeza”, porém nela existem “só palavras ávidas”. Aqui vemos um dos recursos estilísticos mais marcantes de Mariana Ianelli, os grupos consonantais terminados em “r”, que dão uma rítmica forte a noções a que ela quer dar ênfase. Por exemplo, ela usa em outro poema a expressão “tigre branco” em que a agressividade do “gr” e a braveza do “br” sublinham a sutileza da imagem de um tigre todo branco, todo alvo, sem as listras negras que caracterizam o animal real – uma imagem totalmente em branco, que imagem mais poética pode haver? Pois, em “palavras ávidas”, a par da revisitação à reiteração do “v”, que proporciona uma textura de maciez ao verso, temos ainda outro grupo consonantal terminado em “r”, a perfeita lavra de “palavras”. Ainda mais, não se trata de umas palavras quaisquer, mas de “palavras ávidas”. Ávidas de quê? De serem ouvidas, de serem entendidas. Mariana Ianelli lança garrafas ao mar, mas ela quer avidamente que alguém pegue cada garrafa e decifre a mensagem nela contida. Primeiro vem o amor – e depois?

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