8 de maio de 2013

Lembranças judaicas em São Paulo

Há algum tempo o Diário do Comércio de São Paulo me encomendou a seguinte resenha: A grande e melancólica beleza do desterro - Renato Pompeu. Acostumado a lidar com os grandes textos da milenar literatura em hebraico e da literatura judaica em geral em várias línguas, tesouros de joias brilhantes e finamente lapidadas, Luis S. Krausz, professor da Universidade de São Paulo, nos proporciona, no livro entre de crônicas e de ensaios “Desterro – Memórias em ruínas”, editado pela Tordesilhas, uma verdadeira escultura de palavras lavradas ao mesmo tempo com delicadeza e robustez. Trata-se de lembranças, encarnadas às vezes em objetos venerados, às vezes em vivências enlevadas, da épica vida de judeus migrados da civilizada e antiga Europa para um país ainda em formação, sem maiores glórias em seu passado, entremeadas com pinceladas ao deus-dará das selvagens e desenvoltas situações metropolitanas da caótica Grande São Paulo de hoje. Episódios reais da vida dos imigrantes, chamados pelos nomes verdadeiros, ocorridos, seja na Europa, seja nas Américas, ou até no Oriente Médio, são tratados com os maravilhosos recursos da grande literatura imaginativa; a tal ponto que as cenas narradas e os objetos descritos, apesar de terem realmente ocorrido ou ainda estarem realmente existindo, aparecem como verdadeiras criações de um grande poeta particularmente fecundo. Mesmo a proverbial feiura, paradoxalmente tão amada por seus habitantes, da cidade de São Paulo, aparece tecida liricamente com palavras de luxo, como na abertura do livro: “É mais uma daquelas manhãs de São Paulo em que o sol pinta de amarelo as folhas, e o céu azul, estonteante, faz pensar nos ideais daqueles que, num tempo esquecido, arquitetaram um novo país, construído sobre as ideias da Europa do século XIX, mas numa terra de fartura, onde escravos serviam os homens livres: os que conceberam a bandeira nacional com aquelas cores que se podem avistar ao olhar um pouco para cima, para as copas das árvores, verdes apesar de tudo, e para o meio do céu, cujo azul parece sobreviver, impassível, porque, ao olhar para cima, os olhos perfuram o manto de fuligem que cobre toda a cidade, como um ser dotado de vontade própria, como um parasita insaciável”. Parabéns a São Paulo, por ter inspirado tão talentoso cantor! Cenas da vida urbana e da tão pouca urbanidade das movimentações em São Paulo são encadeadas com cenas de um passado tão remoto e tão recente da vida da Europa em seu auge, na passagem do século 19 para o século 20, uma época de alta civilização e de alta cultura, de paz hierática entre os anos 1870 e o terrível 1914. Então os judeus europeus tinham esperanças na assimilação e adotaram os ícones das culturas nacionais, especialmente as germânicas – alemãs e austríacas –, hoje de triste memória. Mas os judeus desterrados de suas pátrias europeias guardaram ainda as memórias maravilhosas da vida na chamada “Belle époque”, a vida da chamada “Jeunesse dorée” (Bela Época e Juventude Dourada). As cenas do contraditoriamente tocante caos urbano de São Paulo são também entremeadas com tentativas dos desterrados de recriarem, em terras selvagemente tropicais, a vida encantada, e tornada ainda mais encantada pela cristalização da memória, da antiga Europa. Assim fala Krausz, por exemplo, de Ada Löwy, matriarca vinda da Áustria para o Brasil na primeira metade do século 20, já idosa mais para o fim da segunda metade: “Seu rosto não tinha mais a expressão orgulhosa e divertida de uma dama elegante: era antes o desabamento do sonho que levara seus pais e avós de localidades mergulhadas na fé inquestionável nos rabis milagrosos do hassidismo, como Czortkow e Sadagora, na velha Galícia e na Bucovina, e de lá para a verdadeira Viena. Lá seu marido Jakob Löwy tornou-se James Löwy, um ‘gentleman’ à inglesa, fabricante de tecidos. Sua história está contada no romance ‘Grossstadtjuden’, ou ‘Judeus da cidade grande’, de Adolf Dessauer. Em seu guarda-roupa estavam os trajes perfeitos para todas as ocasiões da vida social – ‘lunches’; ‘five-o’clock teas’; ‘cocktail parties’. Logo a grande guerra devorou-lhes a fábrica, a pátria, mas não o sonho: no Brasil reconstruíram tudo o que ficara perdido ‘drüben’, do outro lado, quando a Alemanha e a Áustria começaram a vomitar seus judeus e eles cruzaram os mares em todas as direções, como se tivessem sido engolidos por um grande peixe que os abandonaria na praia de seus sofrimentos”. O casal restabeleceu no bairro paulistano do Sumaré a vida que tinham em Viena: “Eram sócios do Jockey Club. E andavam pela rua Augusta num Mercedes-Benz azul escuro. Tudo como deve ser. Nas festas, no casarão, havia ‘foie-gras’ com gelatina de vinho madeira. As bebidas e iguarias eram como hóstias sacramentais, capazes de reescrever a história, de levar os convivas a comungarem com seres de uma ordem superior, em salões embalados pela música dos anjos, da prata, do cristal e da porcelana”. Em suma, os desterrados tornaram a cidade muito melhor do que a encontraram.

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