13 de julho de 2013
O mal-estar da maternidade
A terceirização do “não”:
minhas conclusões como jornalista
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Renato Pompeu
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Aqui se seguem as conclusões a que cheguei, de minha exclusiva responsabilidade, após conversar com grande número de terapeutas e de pacientes.
O sofrimento da criança na atualidade apresenta três aspectos principais que o distinguem de situações anteriores.
1) Freud há cem anos observou que uma educação menos repressiva do que a de então geraria adultos menos neuróticos. Ele tinha em vista a crueldade da moral vitoriana, que gerava histerias e neuroses. Cem anos depois, muitos pais têm dificuldades em dizer não a seus filhos, em lhes transmitir a lei e principalmente em aguentar o ódio que a criança sente quando o adulto não atende suas situações.
Os pais passam a semana inteira trabalhando e, quando estão com seus filhos, querem cenas de plena satisfação. São hoje os pais que pedem aos filhos para serem amados. As crianças não internalizam a lei. Os pais não suportam a dureza de frustrar a criança – e a rigor terceirizam o “não”.
2) Hoje as crianças são levadas pelo discurso capitalista a não serem ativas em seus brinquedos. Elas não se perguntam o que podem fazer com seus brinquedos e sim “o que faz este brinquedo”. O “fazer” fica posto no objeto. Freud constatou que a criança, ao brincar, elabora os conflitos; por exemplo, depois de passar pela situação desagradável de levar uma injeção, a criança “aplica” uma “injeção” num boneco, brinca ativamente, se torna senhora daquela situação desagradável, dá sentido ao que acontece em sua vida, mas hoje o lado ativo fica com o brinquedo, a criança pergunta “que que faz este brinquedo”, não elabora mais seus conflitos, se torna espectadora e não criadora do que o brinquedo faz, o “fazer” se torna da ordem do “ter” e não do “ser”.
De um lado, se tem horror a levantar a mão contra a criança, de outro lado a televisão pode vender o que quiser à criança, aos berros, aumentando os decibéis – afinal, isso não é uma violência? Bater é o fracasso da palavra, mas a palavra pode precisar do gesto, precisa do “não”, os pais hoje estão desautorizados a dizer “não” à criança.
3) Existe um “mal-estar da maternidade”. As mulheres hoje têm liberdade de amar e de trabalhar. Há cem anos aspiravam a ter um bom casamento e a ter bebês saudáveis, especialmente bebês do sexo masculino. É como se se dissesse à mulher: você não tem pênis, mas pode ter um bebê. Hoje a mulher tem liberdade de amar e de trabalhar, outras formas de realização. Nem todas desejam ter filhos, mas ao decidirem ter descobrem que a liberdade de escolher implica a responsabilidade pela escolha. Surgem novos vieses no padecimento psíquico, Mulheres com bebês fisicamente saudáveis pedem atendimento terapêutico. Ativas, executivas, empreendedoras, muitas vezes filhas de mães que não trabalhavam fora e lhes aconselhavam “vá à luta”, elas vencem a angústia e o sofrimento e têm sucesso na carreira, acham que vão tirar a maternidade de letra, e de repente descobrem que a maternidade não é um idílio, dá muito trabalho. A futura mamãe lista enxoval e reúne apetrechos inimagináveis, manuais, e de repente descobre que a relação com o bebê é uma construção, não se aprende a técnica de fazer dormir seguindo o manual, é preciso relacionar-se com o bebê e organizar o seu sono, a sua alimentação, tudo isso não é questão de eficácia, e sim de um relacionamento em construção. Uma mãe perguntou: “Como suportar a passividade do bebê, se eu tive de calar a minha passividade?”
Hoje em dia o tempo se comprime, vivemos apressados, mas o bebê exige que se dê tempo a ele. A mulher tem êxito na carreira, tem uma simetria com o parceiro, com o marido – ela tem sua carreira e seus amigos, ele tem sua carreira e seus amigos, mas a maternidade rompe essa simetria: o papel de mãe é muito diferente e muito mais exigente do que o de pai. A par disso, a maternidade é idealizada por ser um laço permanente – o emprego pode não ser permanente, o marido pode não ser permanente, a própria cidade em que a mulher mora pode não ser permanente, até o país... Mas o filho é permanente, é para toda a vida e parece um laço seguro. No entanto, ao ser mãe a mulher descobre que, ao contrário do que se idealiza, o amor da mãe pelo filho não é “natural”; como toda instância humana esse amor é mediado pela palavra, pelo símbolo. A relação entre mãe e filho é ambivalente, há mães que não aguentam o bebê e hoje não há o apoio da família extensa, a mãe se vê no apartamento sozinha com o bebê, “Nana nenê, senão a Cuca vem pegar”, é a mãe que, se o bebê não dormir, pode se transformar em bicho-papão. As mães, diante do comportamento do filho, se assustam, se angustiam, se deprimem, não suportam, não sabem dar tempo ao bebê. O pai dá banho, troca, nina, mas a mãe constata: “Ele ajuda, mas sou eu que digo que é hora de dormir, é hora de se alimentar”. Os papéis de mãe e pai são diferentes.
Essa diferença a mãe pode transformar ou em sofrimento, ou em possibilidade de invenção. A maternidade não é apenas uma possibilidade de realização fálica, mas implica algo profundamente feminino, a invenção, o brinquedo, “as boas mães são um pouco loucas”, inventam palavras, renomeiam objetos, “bebê quer plimplim”.
A suposta “cura” pelo remédio
De outro lado, por via da chamada medicalização, o que é na verdade um sintoma passa a ser considerado como uma doença. Por exemplo, a dislexia, a dificuldade para aprender a ler e a escrever, é vista pela psicanálise como o sintoma de distúrbios emocionais da criança mais ou menos graves, que devem ser tratados para que se possa lidar com a dislexia e outros problemas. No entanto, quando a criança apresenta dislexia, a tendência atual vem sendo a de considerá-la como um problema no cérebro que deve ser tratado com medicamentos e com treinamento supervisionado por um neurologista. O sintoma pode ser amenizado, ao mesmo temporariamente, mas a doença permanece e pode ter outras manifestações.
Assim, a medicalização promove a “dessubjetivação” da criança. Ao invés de ser reconhecida como um ser sensível, cujo mundo emocional pode estar sendo afetado por falta de relacionamentos adequados com outras pessoas, particularmente os pais, a criança é vista “como uma portadora de um mal a ser extirpado” por um medicamento ou por um treinamento especial. O comportamento de “estudar muito”, ou de “escrever torto”, é visto como “doença”, como “diagnóstico”.
Com isso, ocorre um “apagamento do singular”, ou seja, a individualidade daquela criança, a especificidade da situação pessoal em que se encontra, não são levadas em conta.
Outro problema no relacionamento entre as crianças, seus pais e os terapeutas: “A falta de educação hoje gera uma demanda psicanalítica”. Em outras palavras, os pais abdicaram de educar seus filhos e, quando essa falta de educação lhes cria problemas, eles procuram a ajuda de um terapeuta profissional. Houve o caso de um pai a quem havia sido dito que ele precisava brincar mais com o filho, ao que o pai respondeu: “Mas por que eu tenho de brincar com ele se a babá já brinca?”.
Os pais terceirizam tudo. A criança sabe que quem cuida dela são profissionais empregados, e se recusa a vê-los como tendo a função de impor limites a ela. A criança se torna uma pequena déspota, uma pessoa autocentrada. Houve o caso de uma menina de 4 anos que tinha duas babás e um motorista e que, tendo os pais lhe dado o poder de aceitar ou demitir esses profissionais, reinava como uma tirana sobre eles.
Os pais procuram atender o que julgam as necessidades materiais de seus filhos, introduzindo-os no mundo do consumismo, mas a educação eles terceirizam. Que pode a escola, que pode a psicanálise se os pais abdicaram da função de educar? A educação é uma repetição exaustiva, até inculcar os comportamentos e valores, e os pais não querem executar tarefa tão cansativa.
Por isso, é um alívio para os pais quando, se a criança não aprende a ler, é diagnosticada como “disléxica”, ou se, quando briga com os colegas, é considerada “hiperativa”, ou ainda, se parece desatenta, isso se deve a “um déficit de atenção”. Em suma, é um alívio se dar conta de que o pai não tem nada a ver com o problema do filho e que este não tem nada que um medicamento não possa resolver.
Se a ciência coonesta assim o comportamento dos pais, e apresenta o problema da criança como neurológico, todos ficam desobrigados de se verem envolvidos numa situação problemática. Um dado estarrecedor que foi publicado no jornal de Buenos Aires “La Nación” a 29 de outubro de 2010: nada menos de 43% por cento das despesas de uma família média na Argentina se referem ao consumo de crianças de 8 a 13 anos. Atenção: o problema do consumismo infantil não se limita às camadas privilegiadas da população. Por exemplo, num trabalho psicoterapêutico na comunidade de Paraisópolis, comunidade carente na Zona Sul de São Paulo, próxima ao bairro rico do Morumbi, se encontrou uma mãe que fazia questão de atender a todos os pedidos do filho. Perguntada sobre como fazia, com tão poucos recursos, para cumprir todas as vontades do filho, a mãe respondeu: “Simples, faço como este mês – não pago a conta de luz”. A universalização da transformação das crianças em pequenos tiranos consumistas tem a ver com o “efeito China” – se não dá para comprar a boneca Barbie, tem uma boneca chinesa a 1 real e 99 na loja do bairro.
As crianças assim aprendem a tiranizar os adultos e têm poucas experiências de se relacionar realmente com pessoas. Nada pode faltar às crianças, que têm acesso a tudo que é imaginável, a todos os gadgets – só o que pode faltar é educação, é o relacionamento em que os pais efetivamente cumpram a função paterna e a função materna. Não são os pais que decidem ao que a criança pode ter acesso, “é o dinheiro que decide” se o pedido da criança vai ser atendido. A criança aprende que tudo é descartável.
Em resumo, os pais abdicaram da função de educar e enchem as crianças de alimentos, roupas e gadgets – e se espantam quando as crianças se sentem infelizes e começam a manifestar sintomas.
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