5 de outubro de 2013
São Paulo é que criou o Cristo que conhecemos?
Resenha para a revista Retrato do Brasil
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Como São Paulo teria
“inventado” Jesus Cristo
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Renato Pompeu
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Jesus Cristo realmente existiu, mas sua vida e obra foram muito diferentes da imagem que temos hoje, a qual foi criada principalmente por São Paulo, que não conheceu Cristo pessoalmente e o idealizou e acabou consagrando, embora não o considerasse divino. Esta, pelo menos, é a tese de Selina O’Grady, jornalista da BBC especialista em temas históricos e religiosos, sobre os quais produziu várias séries televisivas e publicou livros de vulgarização. Essa sua tese consta de seu mais recente livro, editado no ano passado pela Atlantic Books da Grã-Bretanha, “And Man Created God – Kings, Cults and Conquests at the Time of Jesus”, ou seja, “E o homem criou Deus – Reis, cultos e conquistas no tempo de Jesus”.
Escrito mais ao estilo de uma vivaz reportagem que procura recriar pessoas com seus hábitos e cacoetes, e os ambientes luxuosos ou modestos que frequentavam, do que com o sisudo teor das obras de historiadores eruditos, o livro divulga para um público mais amplo teses que já estão consagradas pela historiografia das religiões. Como acreditar em Deus é uma questão de fé e escrever um relato histórico, ainda que semijornalístico, requer base em documentação deixada por seres humanos, e não por Deus, o tom geral do livro é agnóstico.
Para o grande público ao mesmo tempo culto, mas leigo no assunto, uma das grandes contribuições do livro é a divulgação mais ampla de teses há muito aceitas entre os pesquisadores sobre o fato de que o cristianismo tal como o conhecemos, e mesmo a figura de Jesus Cristo tal como consta no imaginário de bilhões de fiéis, são em grande parte “invenções” de São Paulo e não criações propriamente de Jesus Cristo e seus apóstolos. Selina O’Grady, por exemplo, nota que, cronologicamente, os escritos de São Paulo são anteriores a todos os demais textos do Novo Testamento, inclusive os Evangelhos, embora esses se refiram a fatos anteriores aos narrados por São Paulo. Isso quer dizer que o pensamento de São Paulo influenciou as histórias sobre a vida de Jesus, dando a essa vida um colorido algo diferente do que realmente aconteceu.
Aqui temos de lembrar que há estudiosos agnósticos e ateus, principalmente na antiga União Soviética, que consideraram Jesus Cristo não ter jamais existido, já que não existem registros sobre ele contemporâneos à sua vida, mas apenas a partir de cerca de um século após a sua morte. Mas a maioria dos pesquisadores considera que Jesus Cristo efetivamente existiu, e lembram que os documentos mais antigos referentes a Alexandre, o Grande, datam de cerca de três séculos depois de sua morte, sem que ninguém ponha em dúvida a sua existência. Apenas Selina O’Grady nota que, pelo que se sabe a partir de documentações, Jesus foi mais um de numerosos pregadores judeus que atuavam na Palestina durante a ocupação romana.
Em primeiro lugar, é preciso notar que Jesus pregou predominantemente para pescadores e camponeses que viviam em pequenas aldeias da Galileia, não tendo maiores experiências no verdadeiro centro do judaísmo da época, a Judeia. Também não teve maior influência junto a setores médios e altos da sociedade judia da época. Acima de tudo, sua pregação se dirige praticamente apenas aos judeus da Palestina, não se dirigindo aos outros povos da época. Seus apóstolos, que eram também pescadores e camponeses de pequenas aldeias, também se dirigiram aos judeus, embora tenham ensaiado acenos a não-judeus simpatizantes do judaísmo, que, porém, segundo os apóstolos, precisavam se converter ao judaísmo e adotar as suas práticas, como a circuncisão, para poderem ser seguidores de Jesus Cristo. Todos eles, Cristo e seus apóstolos, eram críticos em relação às autoridades romanas.
São Paulo, no entanto, tinha uma experiência completamente diferente. Nascido Saulo, era um judeu da Diáspora, e não da Palestina; nasceu em Tarso, na Ásia Menor, hoje na Turquia. Além disso, era de uma camada social mais alta. De profissão era produtor de tendas para os acampamentos militares dos romanos e, além disso, também coletava impostos para o Estado romano. Isso o colocava em colisão com grande parte dos judeus da época, particularmente na Palestina, que eram resistentes à ocupação romana, e não aliados das autoridades romanas. Como judeu pio e como agente dos romanos, Saulo participou da perseguição aos cristãos. Mas a partir de uma viagem a pé para Damasco, começou a ter visões em que Jesus lhe aparecia como pregando para judeus e para não-judeus e não só para não-judeus simpatizantes do judaísmo, mas para todos os seres humanos, inclusive os que não queriam se converter ao judaísmo.
A partir dessas visões, Saulo se converteu ao cristianismo, e mudou seu nome para Paulo, que significa “pequeno” em latim. Mas não se tratava do cristianismo como regeneração do judaísmo, tal como constava da pregação do próprio Jesus Cristo e de seus apóstolos, mas sim de uma religião universal, para todos os povos, tal como era pregada por Jesus Cristo em suas aparições na visão de São Paulo.
Toda essa história consta apenas do último capítulo do livro de Selina O’Grady. Não se restringindo à história do cristianismo, mas abrangendo todo o ambiente histórico, religioso, cultural, social, político e econômico do chamado mundo conhecido na época pelo Ocidente, ou seja, a Europa, a Ásia e o Norte da África, a autora mostra como as concepções sobre Deus e os textos sagrados foram produções de seres humanos que procuravam responder às exigências de seu tempo.
O período coberto pelo livro começa algumas décadas antes do nascimento de Cristo e chega ao século 4.o d.C., quando o imperador romano Teodósio proibiu o culto de outras religiões que não a cristã – e também a judaica, únicas religiões admitidas no Ocidente até poucas décadas atrás. A autora chama a atenção para o fato de que a Antiguidade foi muito mais tolerante quanto à diversidade de religiões do que a Idade Média ou a Idade Moderna; mesmo hoje, na Idade Contemporânea, na maioria dos países não se chegou a um nível de tolerância religiosa comparável aos tempos antigos.
Ela assinala inicialmente que, nos tempos imediatamente anteriores e posteriores a Cristo, o mundo estava passando por uma mudança geral nas concepções religiosas, provocada por uma mudança também geral no modo de vida das pessoas. Antes dessas grandes mudanças, praticamente a totalidade das pessoas era constituída de famílias de agricultores que não conheciam ambientes urbanos e cultuavam divindades a que pediam boas colheitas, em troca de sacrifícios propiciatórios. Também havia tribos guerreiras que cultuavam deuses que propiciavam coragem e vitórias nos combates seguidos de saques.
Os cultos a deuses rurais e tribais, entretanto, não eram adequados aos grandes impérios que começaram a se formar no período abrangido pelo livro, o Império de Alexandre e os de Roma, Pérsia, Índia e China. Nos impérios de Alexandre e de Roma, chegou a haver tentativas de divinizar o imperador, mas isso criava dificuldades para os seus súditos de múltiplas etnias e múltiplas divindades. Surgiu um problema novo: como se podia ser ao mesmo tempo um fiel egípcio, de cuja identidade fazia parte a crença nos antigos deuses rurais e tribais, e um fiel súdito romano?
Também a instauração dos grandes impérios não só fez aumentar grandemente o grau de urbanização das sociedades, como também mudou radicalmente o caráter das cidades. Até então elas eram sedes de templos e de guarnições militares de praticamente uma etnia só; então passaram a ser centros comerciais e administrativos multiétnicos, além de contarem com soldados de várias regiões de cada império, com cada etnia cultuando os próprios deuses. Os deuses que serviam para os camponeses (ou para os escravos agrícolas) e para os grandes proprietários agrários (que constituíam aristocracias nobiliárquicas) não serviam, de um lado, para os comerciantes e artesãos que eram extremamente móveis e circulavam por várias cidades do império, sem estarem apegados aos deuses de cada uma, e que haviam enriquecido, mas cujo status social não era reconhecido como alto pelas nobrezas agrárias que continuavam dando o tom na sociedade. Aos deuses particularistas do campo e das tribos, esses comerciantes e artesãos passaram a preferir deuses ao mesmo tempo mais universalistas e que permitissem uma exaltação da personalidade. O mesmo ocorria com os quadros administrativos mais altos, como por exemplo os grandes coletores de impostos, que, juntamente com a corte imperial, necessitavam de um culto que tornasse mais respeitado o Estado cada vez mais centralizado e cada vez atingindo territórios maiores e populações mais densas e mais heterogêneas.
Havia formas especiais de espiritualidade entre as camadas mais intelectualizadas, não só dos comerciantes e artesãos, como dos quadros administrativos e ainda dos próprios senhores agrários. Essas camadas mais intelectualizadas se interessavam mais por filosofia do que por religião e assim cresceram, nas cidades do Império Romano e também dos Impérios da Pérsia e da Índia, afetados pela cultura grega desde o Império de Alexandre, primeiro os números de adeptos do epicurismo e, em seguida, do estoicismo, com seu culto à Razão e às liberdades individuais.
Isso que se pode chamar de espiritualidade filosófica atingiu, porém, o auge na China, onde o confucianismo se tornou uma verdadeira religião estatal, um culto seguido pela poderosa burocracia centralizada imperial. Esse pensamento dominou a sociedade chinesa durante dezenas de séculos, sendo de notar que Selina O’Grady chama a atenção para o fato de que a ideologia originada a partir de Confúcio foi, entre todas as ideologias criadas pelos seres humanos até agora, a que dominou mais pessoas durante mais tempo. O Império chinês foi o que mais avançou no desenvolvimento de uma religião estatal que legitimasse, aos olhos das massas da população, o poder imperial. No entanto, cabe lembrar que, para os burocratas chineses, o poder imperial só era legítimo enquanto fosse um bom governo, aprovado pelo Céu (um princípio impessoal). O imperador só era legítimo enquanto tivesse o mandato do Céu e a comprovação concreta disso era a satisfação da população com o governo. Quando a população não se sentia bem servida pelo governo, isso era sinal de que o Céu tinha retirado o seu mandato ao imperador, sendo então legítimo derrubá-lo e substituí-lo por outro imperador, e mesmo por outra dinastia, que cumprisse o mandato do Céu. Desse modo, na China, até o século 20, a religião estatal era mais forte do que o próprio imperador. Assim, em parte pelo fato de que o Império chinês era étnica e culturalmente mais homogêneo do que os outros impérios, não foi necessário tornar religião oficial uma religião de salvação pessoal, embora religiões salvacionistas como o budismo e o taoísmo tenham penetrado na massa da população chinesa, toleradas pelo culto estatal.
Diferentemente da China, não foi possível instaurar religiões estatais de cunho mais racional do que emotivo nos outros impérios do mundo então conhecido na Europa, Ásia e Norte da África. Não que tenham faltado tentativas de deificar a pessoa do imperador, em Roma, na Índia ou na Pérsia, armadilha da qual a religião estatal chinesa escapou e que afinal de contas não “pegou” em nenhum dos grandes impérios citados, embora tivesse sido comum a deificação do rei em sociedades ainda mais antigas, como o faraó do Egito. A deificação do imperador do Japão, corrente até o fim da Segunda Guerra Mundial, não é discutida no livro de Selina O’Grady, pois a sociedade japonesa só entrou na história a partir do século 7.o d.C., isto é, depois de encerrado o período de que ela trata.
De toda forma, a deificação do soberano só era possível em unidades políticas menores e étnica e culturalmente mais homogêneas do que os grandes impérios antigos. Estes procuravam articular num todo orgânico único toda a massa de seus súditos, cada um dos quais ficava então dividido entre as tradições em que se tinha criado e se formado e a nova tradição imperial que lutava para se afirmar. Em socorro do Estado imperial, entretanto, em formas variadas conforme as condições materiais e ideológicas de cada império, vieram porém as religiões salvacionistas.
Essas religiões salvacionistas pregavam não mais predominantemente rituais e sacrifícios aos deuses para que estes retribuíssem com benesses materiais, mas primordialmente regras comportamentais consagradas pela divindade e que, uma vez cumpridas por parte de cada indivíduo, lhe garantiriam a salvação, expressa na bem-aventurança após a morte. Seu surgimento também estava relacionado, como as tentativas de culto estatal, com a necessidade de manter a identidade pessoal em meio à multiplicidade étnica e cultural dos novos impérios. Havia, nas novas condições sociais, mais dinâmicas, a necessidade de conciliar a individualidade de cada um com a universalidade exigida de cada súdito do império.
Assim, na Pérsia surgiu o zoroastrianismo, religião dualista – tinha o Deus do Bem e o Deus do Mal – que pregava que o fiel, se cumprisse os mandados do Deus do Bem, garantiria a salvação de sua alma após a morte, mas, mais profundamente, pregava que todos os fiéis eram iguais entre si. Isso de um lado, satisfazia a espiritualidade de cada um, pois as antigas religiões rurais e tribais atribuíam status pleno, perante cada divindade, apenas aos grandes sacerdotes, ficando os demais fiéis numa situação mais periférica em relação a cada deus. E, de outro lado, satisfazia a necessidade do poder central de a condição de súdito ser sentida como uma condição universal de cada súdito.
Na Índia, num primeiro momento, o novo poder imperial tentou recorrer ao budismo, e, em grau menor, ao jainismo, como religião que exercesse o mesmo papel que o zoroastrianismo exercia na Pérsia. A religião tradicional indiana, o hinduísmo, parecia não servir como religião universal, pois dividia os seres humanos em castas hereditárias, entre elas a dos sacerdotes ou brâmanes, a dos guerreiros e governantes, a dos comerciantes, artesãos e lavradores, e a dos párias, ou intocáveis, ou Dalits (que faziam os serviços mais “sujos”, como os de limpar banheiros, conduzir esgotos e cuidar de cadáveres). Tanto o budismo como o jainismo, este mais rigoroso em seu ascetismo, pregavam que todos os fiéis eram iguais e que sua salvação dependia, não do acaso do nascimento nesta ou naquela casta, mas do comportamento ético de cada um. Mas os padrões éticos e o ascetismo exigidos pelo budismo, e ainda mais pelo jainismo, eram tão elevados e tão rigorosos, além de exigirem uma alta intelectualização, que não emocionaram as grandes massas da população indiana, que preferiam se envolver com os festivos rituais hindus, mais atraentes do que a ascese budista ou jainista. O papel de religião “imperial”, assim, acabou indo para um hinduísmo transformado, que passou a admitir, influenciado pelo budismo e pelo jainismo, que cada um, de qualquer casta, por seu comportamento individual, poderia após sua morte reencarnar-se numa pessoa de casta superior e assim sucessivamente, até reencarnar-se como brâmane, podendo então aspirar à salvação após a morte. (Embora tenha praticamente desaparecido na Índia, o budismo sobreviveu a sua derrota pelo hinduísmo. Transformado num culto mais popular e menos ascético, espalhou-se pela população da China e Japão e pelo Sudeste Asiático. O jainismo continuou excessivamente ascético e não se popularizou nem se espalhou fora da Índia).
Em Roma, o judaísmo, tornado religião salvacionista por influência do zoroastrianismo, não podia tornar-se uma religião imperial porque era a religião de uma etnia só, o chamado povo eleito de Israel. Outras religiões, como o culto a Ísis, ou a Mitra, ou a Apolônio, embora muito mais difundidas no Império do que o cristianismo em seus inícios – este era professado por apenas 15 por cento dos moradores no Império Romano quando foi estabelecido como religião estatal – , não eram porém salvacionistas, pois ao invés de terem um código de conduta cuja obediência assegurava a salvação, se baseavam ainda no antigo “é dando que se recebe”, ou, mais exatamente, “é fazendo oferendas à divindade que ela retribui com benesses”. Além disso, nelas os sacerdotes valiam mais do que os fiéis. Ocorre, porém, que, como vimos, Jesus e seus apóstolos, que haviam vivido a vida toda na Palestina, sempre se consideraram judeus e só se dirigiram a judeus. Até que São Paulo, judeu que não nascera na Palestina, e sim na Ásia Menor, e que era tão romanizado que era produtor de tendas para os soldados romanos e coletor de impostos para o Estado romano – duas atividades que a maioria dos judeus julgavam blasfemas – e que não conhecera Cristo pessoalmente, e acima de tudo vivia na carne o dilema entre ser um bom judeu e ser um bom cidadão romano, passou a alardear que Cristo lhe aparecia em visões, como portador de uma mensagem universal, para judeus e para não-judeus, para todos os seres humanos, enfim, considerados iguais entre si. Com o tempo, as décadas e os séculos, os imperadores, como Constantino e Teodósio, passaram a perceber que o cristianismo, como religião que considerava todos iguais perante Deus, e que era salvacionista, era a religião imperial que tanto procuravam – uma criação, afinal, de São Paulo, para conciliar seu desejo de ser um bom religioso com sua vontade de ser um bom súdito romano.
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