28 de novembro de 2013

A ficção de uma psicanalista

Da Carta Capital - Narrativa fragmentada conta toda uma história - Renato Pompeu - Embora possam chamar atenção pelo fato de a autora ser psicanalista, as ficções da paulistana Sylvia Loeb, nestes tempos em que a literatura parece se dividir entre a ficção que visa mais o mercado do que a arte, praticada por escritores profissionais assessorados por equipes especializadas em pesquisas sobre os gostos do público-alvo e sobre os temas de maior interesse no momento, e a ficção com ambições mais eruditas, praticada em geral por mestres e doutores em letras, se inserem nas tradições maiores da narrativa em estado puro. Ou seja, ela é herdeira dos grandes escritores, reconhecidos como tais, fossem quais fossem suas profissões no que podemos chamar de mundo profano em relação a essa instituição sagrada que é a arte. Consagrada em 2007 por “Contos do divã – Pulsão da morte e outras histórias” e em 2010 por “Amores e tropeços”, este também de contos, Sylvia Loeb agora lança “Heitor”, pela Terceiro Nome, sem nomear o gênero a que se filia o livro. Mas, embora ele seja apresentado quase como um ensaio sobre a maldade, pela também psicanalista Naomi Jaffe, o que se pode dizer, parafraseando o modo (“romance:contos”) pelo qual o grande escritor Ivan Angelo apresentou o seu excepcional livro “A Festa”, nos anos 1970, é que “Heitor” é uma “novela:fragmentos”. Ou, mais exatamente, uma sucessão sem ordem cronológica de narrações fragmentadas, incluindo fragmentos ficcionais, notícias de jornais, etc., que, porém, forma uma história. Pois, ao final do livro, o leitor consegue construir, ou reconstruir, em conjunto com a autora, uma narrativa com começo, meio e fim. Assim, enriquecido com todos os recursos estilísticos desenvolvidos a partir da modernidade e da pós-modernidade, “Heitor” é tanto mais enriquecido por permitir ao leitor a plena fruição daquilo que é uma narrativa em estado puro, uma história, enfim, o que é o fundamento clássico da já milenar tradição da grande literatura. Isso ao mesmo tempo em que, em dia com a contemporaneidade, o livro permite a cada leitor construir, ou reconstruir, a história à sua maneira. Por exemplo, pode construir ou reconstruir a narrativa a partir do ponto-de-vista do personagem que escolher, entre Heitor, sua mulher, seu filho, sua filha, ou sua empregada. O mais curioso é que, com seu requinte de grande psicanalista, Naomi Jaffe chama a atenção para o fato de que Sylvia Loeb foge aos estereótipos mais vulgarizados do que sejam a teoria e a prática psicanalistas, vulgarização oriunda da incapacidade da grande maioria dos psicanalistas dos Estados Unidos em entender os dois principais pensadores da história da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud e o francês Jacques Lacan, e difundida pela ficção e pelo cinema americanos. Ou seja, Naomi Jaffe quis dizer que Sylvia Loeb não reduz o comportamento de Heitor a seus “traumas” na infância. Mas, assim como Machado de Assis não deve ser tratado como jornalista e alto funcionário público, nem Fernando Pessoa deve ser tratado como correspondente comercial, Sylvia Loeb deve, sim, ser tratada como ficcionista talentosa e, mais do que isso, como ficcionista consumada, muito merecidamente também já consagrada por seus livros anteriores. E que neste “Heitor” atinge a maturidade de uma narrativa de mais longo curso do que seus contos dos livros anteriores. Como boa narrativa, “Heitor” trata, sim, da infância de alguns personagens, nomeadamente o personagem-título e seus filhos.

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