26 de novembro de 2013

Mudanças na subjetividade contemporânea

Trabalhos de História - Mudanças na subjetividade contemporânea - Renato Pompeu - Primeira dissertação - A subjetividade humana, de um lado, se mantém ao longo dos milênios da existência da espécie, e, de outro, muda constantemente de acordo com as circunstâncias históricas. Esse último aspecto é fácil de entender: o conteúdo das informações que cada indivíduo recebe desde o nascimento varia conforme o tempo e o lugar histórico, como também varia o modo como o recebe. Por exemplo, uma criança na Idade Média europeia ocidental não recebia informações a partir das Américas. Nem recebia informações via jornais, muito menos pela Internet. Assim podemos entender como uma pessoa, desde o Renascimento até meados do século 19, desenvolvia sua subjetividade plástica exclusivamente a partir do realismo das pinturas e estátuas. Seres inexistentes na chamada realidade, ou seja, na realidade externa ao pensamento, só eram evocados em narrativas e descrições orais ou por escrito. Somente na era contemporânea é que se passou a ter consciência da possibilidade de transmitir noções e sentimentos, primeiro, a partir de “deformações” da realidade, como o impressionismo, o cubismo, e depois a partir da “criação” de realidades sem contrapartida no mundo externo, por meio do abstracionismo puro. Durante décadas, as desrealidades artísticas que povoavam as sensibilidades dos contemporâneos, refletiam de modo geral um desconforto em relação ao mundo moderno, com sua prevalência de competição e de esmagamento da individualidade e do sentido de pertencimento, primeiro, a uma comunidade, e, depois, a uma classe social, como a classe trabalhadora, ou a um segmento social, como o dos artistas. A partir das últimas décadas do século 20, entretanto, com a derrota dos sistemas alternativos, criticar o capitalismo neoliberal passou a ser visto como se veria uma crítica, por exemplo, à chuva, ou seja, a uma condição natural e inescapável. A única solução, portanto, ao invés de criticar apresentando propostas de mudanças, é procurar se proteger, como por exemplo usando guarda-chuva, ou se divertir, por exemplo dançando na chuva. A única denúncia possível é a de um horror inescapável. Então, o que temos na arte nas últimas décadas são, ou instalações lúdicas, em que o usuário interage com a obra, como se fosse um brinquedo, ou a reprodução de situações aterrorizadoras, como a exibição de cadáveres. O grande problema a ser explicado, entretanto, não é essa situação de a cada época e local corresponder uma subjetividade específica, ou um conjunto de subjetividades específicas daquela época e de cada lugar. O grande problema é que podemos nos comover, nós, contemporâneos, com obras plásticas, teatrais e literárias da Antiguidade, ou de qualquer outra época, e não só de nossa região cultural do mundo, mas com obras provenientes do mundo inteiro e de todos os tempos. Por que nos comovemos, por exemplo, com a peça grega antiga “Édipo Rei”, de Sófocles, embora nossa sociedade seja muito diferente da sociedade daquela época e daquele lugar? - Segunda dissertação – Um dos aspectos mais interessantes e mais desafiadores da subjetividade humana é que, se hoje podemos nos comover com obras criadas na Antiguidade ou na Idade Média, um contemporâneo da Antiguidade ou um lavrador medieval nunca pôde se comover com a “pintura ao léu” de Pollock. Aqui surge um problema particularmente interessante e particularmente desafiador: se pudesse conhecer a pintura no chão de Pollock, um filósofo antigo, ou um escravo antigo, a encararia com os nossos mesmos olhos de hoje? Podemos especular que cada caso é um caso. Uma pintura abstrata, por exemplo, poderia ser fruída por uma pessoa da Antiguidade ou da Idade Média do mesmo modo que fruímos a beleza de uma decoração geométrica produzida por um artista islamita medieval. Mas muitos sentimentos que temos hoje certamente não seriam compreendidos em tempos passados. Nem é preciso que passe muito tempo para que as mudanças se concretizem. Levou séculos para que as pessoas passassem do sentimento de pertencimento a uma tribo, ou a uma etnia, para passarem ao sentimento de pertencimento a uma nação ou a uma classe social. Levou menos tempo, algumas décadas, para se passar da noção de pertencimento a uma família extensa, em que a pessoa conhecia os seus parentes até o quarto ou quinto grau, que eram uma presença intensa em sua vida, para passar ao sentimento de pertencimento exclusivo a uma família nuclear, de pais, filhos e irmãos, em que os parentes em segundo grau não tinham nenhuma importância. E está a cada dia se intensificando a mudança segundo a qual os filhos só têm contato ou só com a mãe, ou só com o pai, em que cada filho tende a não ter nenhum irmão, e mesmo a uma situação em que os pais dão pouca importância aos filhos, e os filhos, por sua vez, não deem muita atenção aos pais. Nas classes ricas, os pais delegam os contatos mais importantes com seus filhos a profissionais pagos; nas classes mais carentes essa delegação é feita à rede pública de ensino. Também levou pouco tempo a mudança dos sentimentos subjetivos a respeito da sexualidade. Particularmente foi o caso das mulheres. Antes vigorava a monogamia, principalmente por parte da mulher, que não tinha outro parceiro sexual além do marido. Isso ocorria tanto pelo temor de engravidar fora do casamento como pela prevalência do amor romântico. Imaginava-se que um verdadeiro amor seria um amor eterno, Além disso, a monogamia e a fidelidade eram sancionadas pela religião, Hoje está cada vez mais rara a mulher que se relaciona sexualmente apenas com um parceiro a vida inteira. Consagrou-se a noção de que o amor é eterno apenas enquanto dura, apesar da insistência da ortodoxia religiosa, e até mesmo da ortodoxia psicanalítica, na manutenção da monogamia vitalícia. Igualmente notável foi a rapidez na mudança das atitudes perante a homossexualidade. Até os anos 1960 a homossexualidade não só era considerada uma doença pelas instituições psiquiátricas como também era considerada um crime passível de cadeia num país tão “civilizado” quanto, por exemplo, a Grã-Bretanha. Hoje, fora dos países islâmicos e uns poucos outros, ela não é considerada, nem uma doença, nem um crime. Mudaram profundamente tanto as atitudes dos próprios homossexuais a respeito de sua homossexualidade – passaram a apresentar-se publicamente como tal – como as atitudes dos heterossexuais perante a homossexualidade, a ponto de ser crescentemente aceito pela opinião pública heterossexual, majoritária, o casamento entre homossexuais. - Terceira dissertação – Uma das grandes mudanças na subjetividade humana durante o século 20 foi sintetizada numa frase lapidar pelo historiador britânico nascido no Egito Eric Hobsbawm, segundo o qual esse século foi “o século do homem comum”. Até o século 20 as artes, como também as ciências humanas, retratavam, com preferência esmagadora, as personalidades destacadas por sua “importância”. Numa vertente, só as pessoas com muito dinheiro podiam comprar obras de artes plásticas e mesmo livros; em outra vertente, as pessoas comuns não eram julgadas dignas de consideração pelos artistas acadêmicos, Isso começou a mudar em meados do século 19, mas mais particularmente a partir do advento do século 20, tanto pelo surgimento da indústria do cinema como da fonográfica. A reação dos intelectuais foi, primeiro, de repulsa às novas artes. O teórico comunista italiano Antonio Gramsci, por exemplo, considerou o cinema muito “inferior” ao teatro, a ponto de Gramsci ter afirmado que o cinema atraía por ser novidade, mas logo perderia interesse, por causa de seu caráter “raso” e “superficial”. Ele não se contrapunha à orientação do cinema de retratar pessoas comuns e trabalhadores em geral, pois julgava que esse deveria ser o papel de um teatro e de uma literatura realmente “nacionais-populares”. Achava porém que o cinema era muito menos belo e muito menos profundo do que o teatro ou a literatura. Muito diferente, no entanto, foi a atitude do governante comunista russo Lenin, que chegou à conclusão de que o cinema era “a arte do futuro”, conclusão esta que se encontra na origem do grande incentivo proporcionado pelas autoridades soviéticas à concretização de grandiosos projetos cinematográficos. Lenin, entretanto, não julgava admirável o cinema somente por sua temática popular, mas principalmente pelo fato de cada exibição poder reunir milhares de pessoas, proporcionando assim uma experiência intensamente coletivista. Podemos especular que, para Lenin, a fruição da televisão, primeiro em família e em pequenos grupos, depois individual, sempre em ambiente doméstico, e não público, seria uma regressão. Mas a maioria dos intelectuais, de início, se insurgiu contra as próprias características do conteúdo das artes cinematográficas e fonográficas. Thomas Adorno, por exemplo, classificou de “regressão do ouvido” a emergência avassaladora dos diversos tipos de música popular a partir do desenvolvimento dos mercados fonográficos. Ele encarava com menosprezo, por exemplo, o próprio jazz, tão cultuado por outros intelectuais e hoje praticamente considerado grande arte no mesmo pé da grande música erudita. A situação se repetiu, de modo diferente, na segunda metade do século 20, com o advento da televisão, de um lado, e do rock, de outro. A televisão foi considerada “maquininha de fazer doido” inserida no besteirol, no Festival de Besteira que Assola o País, por um cronista do porte de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto. A invasão do rock no cenário da música popular brasileiro foi considerada praticamente uma “infâmia” por críticos como José Ramos Tinhorão. Hoje, uma pessoa sofisticada e de gostos requintados, como a presidente Dilma Rousseff, acompanha com muito interesse as telenovelas. E musicólogos eruditos se dedicam ao rock.

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