17 de novembro de 2013
Autoajuda na Antiguidade
Do Diário do Comércio de São Paulo
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Livros de autoajuda já
existiam no Egito antigo
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Renato Pompeu
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O auge atual dos livros de autoajuda data das três últimas décadas do século 20 e coincidiu com o primeiro triunfo em escala mundial do individualismo que sempre caracterizou os Estados Unidos e que, então, se espalhou por todo o planeta, por causa da ascensão do neoliberalismo econômico e da derrocada final do comunismo, fenômenos que puseram fim às esperanças coletivistas antes prevalentes na maior parte do globo. As pessoas se sentiram como que lançadas num mundo de “salve-se quem puder” e encontram nos livros de autoajuda caminhos para a sua salvação individual.
Mas livros de bons conselhos para bem viver, ou, como são também chamados, livros de autodesenvolvimento, sempre existiram desde que existem livros. O próprio nome “autoajuda” vem de um livro lançado em 1859 na Inglaterra, “Autoajuda, com ilustrações de caráter e conduta”, escrito por Samuel Smiles, que procurava guiar seus leitores na selva do capitalismo então nascente, pregando a industriosidade e a respeitabilidade. No entanto, livros de autoajuda já existiam no Egito antigo e novos foram surgindo nos séculos e milênios que decorreram desde então.
Esses livros mais antigos de autoajuda são conhecidos pelos especialistas em história da literatura como “livros de conduta”. Um dos mais antigos que se conhece é “A instrução por Ptah-Hotep”, vizir (equivalente a primeiro-ministro) do faraó cerca de 2.400 anos antes de Cristo. Na velhice, o vizir redigiu uma lista de conselhos a seu filho sobre dizer sempre a verdade, exercer autocontrole e ser bondoso em relação aos outros, mantendo durante a vida uma atitude de conformidade à moral e às regras vigentes. Alguns exemplos: “Toda conduta deve ser tão reta que possa ser medida com um fio de prumo”, “A injustiça existe em abundância, mas o mal nunca pode prevalecer a longo prazo”, “A raça humana nunca alcança nada. É Deus que comanda o que é feito”. Um dos conselhos mais insistentes de Ptah-Hotep é ouvir sempre os outros e só falar quando se tem algo a dizer.
Na verdade, a própria Bíblia pode ser considerada um livro de autoajuda, pelo menos assim é que ela é utilizada muitas vezes, pois os fiéis procuram nos seus versículos normas de condutas em situações ali descritas que lhes parecem semelhantes às que estão vivendo no momento. Na China, se seguem até hoje as normas de comportamento descritas no livro “Analectos” – o nome original é “Pensamentos em ordem de classificação”, escrito há 2.500 anos pelos discípulos do sábio Confúcio. Continha não só conselhos de autoaperfeiçoamento nos conhecimentos e nas decisões éticas, mas principalmente de autocontenção, elegância e frugalidade no comportamento cotidiano. Exemplo:
“Confúcio não desgostava de ter seu arroz bem limpo, nem de ter seu magro naco de carne cortado bem pequeno. Não comia arroz afetado por calor ou umidade e tornado azedo, nem peixe ou carne que tinha passado. Não comia nada descorado, ou de mau aroma, nem nada mal cozido ou fora da estação. Não comia carne que não tivesse sido cortada adequadamente, nem carne que fosse servida sem o molho adequado.” Esse comportamento à mesa é seguido pelos chineses até hoje.
O advogado e político romano antigo Cícero, do século 1.o antes de Cristo, redigiu tratados sobre a amizade e sobre os deveres e obrigações de cada um que serviram como manuais de conduta durante milênios. Já o poeta também romano Ovídio, um pouco posterior a Cícero, em seu livro “A arte de amar”, instrui os homens a como ir a lugares onde se encontram garotas, como envolvê-las com uma boa conversa, como ter relações sexuais que sejam mais afetuosas do que atléticas, este último um bom conselho nem sempre seguido pelos grandes conquistadores.
Dos meados para o fim da Idade Média surgiram muitos livros que hoje seriam livros de autoajuda, com coleções de sermões, cartas, livros de devoção, etc. O mais famoso é “A imitação de Cristo”, do alemão Thomas à Kempis, do século 15, lido e seguido até hoje para o fiel saber como agir para ser um bom cristão, dividido em quatro capítulos: "Conselhos úteis para a vida espiritual”, “Diretivas para a vida interior”, “Sobre a consolação interior” e “Sobre o sacramento abençoado”, ou seja, a comunhão.
Mas foi com o individualismo fomentado pelo Renascimento que surgiu o verdadeiro primeiro auge dos livros de conduta no Ocidente. Um dos mais importantes, do século 16, surgiu em Florença, Itália, das mãos do escritor Giovanni dela Casa, que diz, por exemplo: “É um hábito desagradável erguer o vinho ou o prato de comida de outra pessoa e cheirá-lo”, cumprindo finalmente no Ocidente o que Confúcio tinha pregado séculos e séculos antes na China, as boas maneiras à mesa.
Outra corrente muito importante dos livros de autoajuda do passado são os chamados “espelhos dos príncipes”. São livros redigidos por autores ao mesmo tempo eruditos e experimentados, para instruir os governantes. Os mais famosos são o “Arthasastra”, do indiano Kautilya, da passagem do século 4.o para o século 3.o antes de Cristo; “A educação de Ciro”, do grego Xenofonte, da mesma época, e “O príncipe”, do italiano Maquiavel, da passagem do século 15 para o século 16. No Ocidente, esse tipo de livro começou a aparecer na chamada Alta Idade Média, a partir do século 6.o, quando São Gregório de Tours lançou a sua “História dos francos”, em que aconselha esse povo contra os conflitos entre os próprios francos. Kautilya e Maquiavel ficaram conhecidos como exemplos de astúcia política, até hoje seguidos pelos governantes tanto na Ásia como no Ocidente.
No século 16, o francês Montaigne publicou os seus bem conhecidos “Ensaios”, reflexões sobre a própria conduta e sobre a conduta de personagens tanto históricos como seus contemporâneos, que serviram como conselhos de vida. Ele inaugurou não só o gênero do ensaio, como a reflexão não religiosa sobre o comportamento ético individual. Por isso, seus livros também entram nas categorias de livros de bons conselhos, livros de conduta e livros de autoajuda. Uma lição muito importante a se tirar é que os livros antigos de autoajuda, aqui citados, são muito mais profundos do que os que surgiram durante a atual voga do tema.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio “O mundo como obra de arte criada pelo Brasil”, Editora Casa Amarela.
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