25 de dezembro de 2013

Histórias de navios-fantasmas

Da revista The President - O Holandês Voador e outros navios ao léu - Renato Pompeu - As histórias sobre embarcações de grande porte que vagam ao deus-dará pelos mares do mundo são muito antigas entre os marinheiros. Um navio-fantasma pode ser um navio mal-assombrado, sendo o mais famoso de todos o Holandês Voador (De Vliegende Hollander, em holandês), que foi “visto” várias vezes nos séculos 18, 19 e 20, por pessoas tão ilustres como o rei George 5.o da Inglaterra, que reinou de 1910 a 1935, ou seja, era o rei durante a Primeira Guerra Mundial. Oficial da Marinha antes de se tornar herdeiro do trono em 1892 com a morte de seu irmão mais velho, Edward, George navegou por todo o Império Britânico, e “avistou” ao sul da África o Holandês Voador, um veleiro de guerra ao estilo do século 17 que brilha fantasmagoricamente e que assombra os mares, flutuando sobre as águas, em especial junto ao Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. As “visões” registradas, como a de George 5.o, têm sido atribuídas a ilusões de óptica ou miragens, semelhantes às que ocorrem nos desertos. Tanto quanto foi possível estabelecer a partir de anotações no século 18, a visão original, no século 17, se referia a dois navios de guerra holandeses que navegavam juntos em 1678, até que um deles naufragou, vítima de uma tempestade, tendo morrido todos os seus ocupantes, junto ao Cabo da Boa Esperança. Mas o outro escapou, seguiu viagem e aportou no Cabo. Quando, porém, este barco começou a voltar à Holanda e chegou à mesma latitude e longitude em que tinha ocorrido o naufrágio, se desencadeou outra tempestade, em meio à qual sua tripulação, de repente, “viu” o navio naufragado, brilhando fantasmagoricamente, flutuando sobre as águas no ponto em que naufragara. O navio-fantasma continuou sua flutuação rumo ao Cabo, enquanto o navio real prosseguiu viagem rumo à Holanda. Do porto holandês, a história se espalhou pelos portos europeus em geral. Imagina-se que tenha sido inspirada, no século 17, pela pessoa do capitão holandês Bernard Fokker, que alcançava velocidades inéditas entre a Holanda e a Ilha de Java e adquiriu a fama de ter parte com o Diabo. A partir daí a lenda foi adquirindo novos contornos. O Holandês Voador teria sido condenado a navegar no entorno do Cabo indefinidamente, até o Dia do Juízo Final; seus tripulantes, ao se aproximarem de outro navio, tentariam se comunicar com os tripulantes do outro barco, mas só conseguiriam se comunicar com pessoas mortas. Além disso, ele foi “visto” em outros mares, como o Atlântico Norte e o Caribe; transformou-se, de navio de guerra, em barco de piratas repleto de tesouros, que se tornou mal-assombrado por nele terem ocorrido crimes nefandos. Sua visão foi considerada um sinal ominoso de desgraças próximas. Já no início do século 19, a lenda deu origem a poemas como o do inglês Thomas Moore e relatos em prosa como o do escocês Sir Walter Scott. A obra mais famosa por ela inspirada, entretanto, é a ópera “O Holandês Voador”, do grande compositor alemão Richard Wagner, a qual estreou em 1843, em Dresden. Trata de um capitão-fantasma, condenado a vagar eternamente por ter em vida invocado Satã e que sai a cada sete anos de um navio-fantasma e, numa dessas ocasiões, pede em casamento a filha de um capitão real. No fim, quando o capitão-fantasma tem de voltar ao navio-fantasma, a noiva se joga ao mar, morrendo afogada, redimindo o noivo, subindo aos céus as almas dos dois. Foram feitos vários filmes sobre o Holandês Voador, desde o cinema mudo, em 1923, num filme americano com os atores Lawson Butt, Lola Luxford e Ella Hall, até a série da Disney “Piratas do Caribe”. O nome foi dado a vários tipos de motor, locomotivas, a montanhas-russas, a um trem expresso na Inglaterra no século 19 e a um tipo de veleiro monoquilha de competição desenvolvido desde os anos 1950. Mas há pelo menos dois navios-fantasmas reais, devidamente documentados. Um deles foi o brigue mercante americano “Mary Celeste”, de 282 toneladas, encontrado a 5 de dezembro de 1872 à deriva e sem nenhum tripulante ou passageiro, nas águas do Atlântico Norte entre a Europa e a África, perto de Portugal, pela tripulação do também brigue canadense “Dei Gratia”, que o conduziu até Gibraltar, onde reivindicou sua posse como tesouro encontrado. Trata-se de um dos maiores mistérios da história naval, pois o navio se encontrava em perfeitas condições. Sua carga, os pertences da tripulação e as bagagens dos passageiros, tudo isso foi encontrado intacto; a bordo havia alimentos e água potável suficientes para seis meses de navegação sem escalas; havia até mesmo roupas dos tripulantes e passageiros penduradas nos varais para secarem. A última anotação no diário de bordo, inteiramente de rotina, era de 25 de novembro. A 25 de março de 1873, um juiz inglês de Gibraltar concedeu ao capitão e à tripulação do “Dei Gratia” um total de 1.700 libras, equivalentes a um quinto do valor total do seguro da carga e do navio. O “Mary Celeste” tinha sido construído, com o nome de “Amazon”, num estaleiro da Nova Escócia, no Canadá, e foi lançado ao mar em 1861, como propriedade de oito armadores locais. Seu primeiro capitão, Robert McLellan, filho de um dos armadores, morreu em pleno mar, de pneumonia, nove dias depois de assumir o comando do navio. Sob o capitão substituto, John Parker, o “Amazon” abalroou um navio pesqueiro e teve de ser levado para reparos ao próprio estaleiro em que tinha sido construído, onde... pegou fogo! Consertado, um terceiro capitão o levou numa viagem transatlântica, mas ele bateu num navio inglês no Canal da Mancha, perto de Dover, e o capitão foi demitido. Dois outros capitães morreram a bordo. Depois desse início tumultuado, o “Amazon” passou uns poucos anos navegando tranquilamente entre a Nova Escócia, as Índias Ocidentais e as Américas Central e do Sul. Mas, em 1867, o navio encalhou na costa da Nova Escócia, em meio a uma tempestade. Foi vendido por pouco mais de 1.700 dólares ao armador americano Richard Haines, de Nova York, que gastou mais de 8 mil dólares nos reparos, e mudou em 1868 a matrícula para a bandeira dos Estados Unidos. O barco então transferido para outros quatro armadores americanos, que em 1869 mudaram seu nome para “Mary Celeste”, para usá-lo no comércio entre Nova York e o Mar Adriático. A 3 de novembro de 1872, enquanto o navio estava recebendo um carregamento de álcool no porto de Nova York para levá-lo a Gênova, na Itália, seu capitão, Benjamin Briggs, escreveu, em carta à mãe, que ficou com seu filho mais novo ainda bebê, enquanto a mulher e a filha mais velha, de dois anos, iriam viajar com ele: “Parece que temos um imediato muito bom e espero ter uma viagem agradável. (...) Terminamos de carregar ontem à noite e vamos partir terça-feira, se não sairmos amanhã à noite. Nosso barco está em boa forma e espero ter um bom passadio, mas nunca estive nele antes e não sei como vai ser a navegação”. A 5 de novembro, o brigue partiu, levando a bordo 1.701 barris de álcool para “fortificar” vinhos italianos. A carga valia 35 mil dólares e, incluído o barco, o seguro foi de 45 mil dólares. Além de Briggs como capitão, e de sua mulher e filha como passageiros, havia sete tripulantes, dos quais dois americanos – o imediato e o cozinheiro –, um dinamarquês e quatro alemães; todos os estrangeiros, entretanto, eram fluentes em inglês. Aqui a história adquire ares ominosos. Briggs e família, na véspera da partida, haviam recebido a bordo, para jantar, o capitão canadense David Reese Morehouse e a mulher; velhos amigos, descobriram na conversa que tinham o mesmo rumo, pois Morehouse iria comandar o “Dei Gratia” para levar 1.735 barris de petróleo para a Itália. O “Dei Gratia” ainda estava sendo carregado e só partiu, no mesmo rumo, uma semana depois do “Mary Celeste”. A partir daí, só se sabe que o “Dei Gratia” apenas encontrou bom tempo em sua viagem, até que, a 4 ou 5 de dezembro (a data é duvidosa porque naquela época os fusos horários ainda não estavam perfeitamente definidos), à 1 hora da tarde, o piloto avistou com sua luneta, a cerca de 8 quilômetros de distância do “Dei Gratia”, e a 600 milhas náuticas a oeste das costas de Portugal, uma embarcação. Logo percebeu que, estranhamente, aquele barco balançava ao sabor das ondas e suas velas estavam levemente rasgadas. Chegando mais perto, a tripulação se deu conta de que aquele navio era o “Mary Celeste”. Segundo o relato da tripulação do “Dei Gratia”, seu navio chegou a cerca de 400 jardas (pouco menos de 400 metros) do “Mary Celeste” e todos ficaram observando cuidadosamente o outro navio durante duas horas. Este estava balançando em direção ao Estreito de Gibraltar, sem ninguém ao leme e mesmo sem ninguém sobre o deque, sem nenhum sinal de que estivesse pedindo socorro. Em seguida, o imediato abordou o “Mary Celeste” e voltou dizendo que não havia ninguém a bordo e que “o navio todo era uma bagunça toda molhada”. Pois só havia uma bomba d’água funcionando, as outras duas bombas tinham sido desmontadas e o barco estava inundado, em algumas partes até mais de 1 metro de altura. Mas não havia risco de afundamento e de resto o navio estava em perfeitas condições de navegação. O relógio estava parado, a bússola tinha sido destruída, faltavam o sextante e o cronômetro. A carga estava em perfeita ordem (mais tarde, em Gênova, se descobriria que nove dos 1.701 barris de álcool estavam vazios). Havia mantimentos e água doce em quantidades suficientes para dez pessoas durante seis meses. O “Dei Gratia” rumou para Gibraltar, e o “Mary Celeste”, conduzido pelo imediato do “Dei Gratia”, chegou uma semana depois. O caso foi entregue às autoridades britânicas de Gibraltar, que julgaram ter achado algumas manchas de sangue na cabina do capitão, mas uma equipe do consulado americano chegou à conclusão de que se tratava de ferrugem. O fato de o juiz ter concedido aos tripulantes do “Dei Gratia” apenas um quinto do valor do seguro total chegou a ser interpretado como uma suspeita, pelo juiz, de que eles tinham alguma coisa a ver com o desaparecimento dos tripulantes e passageiros do “Mary Celeste”. Estes teriam sido recolhidos pela tripulação do “Dei Gratia”, dentro de uma combinação para partilhar o valor do salvamento, e levados a lugar desconhecido. Mas investigações se seguiram durante anos a fio e Briggs, a mulher e a filha e os sete tripulantes jamais foram encontrados, nem seus cadáveres. As desventuras do “Mary Celeste” não terminaram aí. Ao ser trazido de volta aos Estados Unidos, o pai de um dos armadores seus donos caiu do navio perto do porto de Boston e morreu afogado. Nos 13 anos seguintes, o barco mudou de dono 18 vezes e, no fim, estava em péssimo estado. Seu último capitão e dono o abarrotou com uma carga de sucata muito mais pesada do que a embarcação podia suportar, com a intenção de fazer o “Mary Celeste” afundar e, assim, ele poder cobrar o seguro. O navio foi encalhado de propósito num recife ao largo do Haiti e, como não afundou, foi ateado fogo, mas o navio não foi destruído e a fraude foi descoberta. O capitão morreu três meses depois de seu julgamento, em que foi absolvido porque a pena era de morte e o júri não quis condená-lo à morte. O navio foi abandonado no recife e acabou afundando; uma equipe canadense em 2001 resgatou o que se pensa sejam os restos do “Mary Celeste”. Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, publicou em 1884 um relato sobre o caso, origem da lenda de que a mesa estava posta no “Mary Celeste” quando ele foi encontrado. Foi feito na Grã-Bretanha, em 1935, o filme “O mistério do ‘Mary Celeste’”. Em 2002 foi lançado “Navio-fantasma”, filme com o ator Gabriel Byrne em que um breve episódio é inspirado no “Mary Celeste”. Outro navio-fantasma de grande porte de história devidamente registrada é o “Baychimo”, um vapor de aço de 1.272 toneladas, construído na Suécia em 1914, com o nome de “Angermanelfven”, para uma firma alemã que o usou no comércio entre Hamburgo e os portos suecos. Após a Primeira Guerra Mundial, o navio foi entregue a uma firma britânica, como reparação de guerra, mudou de nome e passou a ser usado no comércio de peles entre o Ártico ao norte do Canadá e a Escócia. Em outubro de 1931, o “Baichimo”, com uma carga de peles, encalhou num banco de gelo perto da cidade canadense de Barrow, um porto no Ártico. Parte da tripulação, 22 pessoas, foi recolhida de avião e os 15 tripulantes restantes construíram um abrigo de madeira não muito longe do navio encalhado. A 24 de novembro ocorreu uma violenta tempestade em meio a denso nevoeiro; quando o nevoeiro se desfez, não se via mais o navio e a tripulação concluiu que ele tinha afundado. No entanto, poucos dias depois um inuit (antigamente esse povo se chamava “esquimó”) disse ter visto o “Baichimo” navegando à deriva a 70 quilômetros de onde tinha encalhado. Entretanto, a tripulação chegou à conclusão de que não havia como salvar o navio e abandonou a região. Mas depois, durante quase 40 anos, o navio foi visto várias outras vezes navegando à deriva, e até marinheiros de outros barcos subiram a bordo, sem porém terem condições de pilotá-lo. Na última vez, em 1969, um grupo de inuits avistou o “Baichimo” preso ao gelo entre o Mar de Beaufort e o Mar dos Chukchis, ou seja, entre o Alasca e a União Soviética. Depois, não foi mais visto e se presume que tenha, afinal, afundado. Mas a rigor não se sabe se ele continua navegando à deriva. São mistérios do mar.

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