9 de dezembro de 2013

O paradoxo de Zuenir Ventura

Do Diário do Comércio de São Paulo - Nostalgia sem saudade, o paradoxo de Zuenir Ventura - Renato Pompeu - Aos 80 anos, o consagrado jornalista, escritor e cronista Zuenir Ventura estreia na ficção já como romancista consumado, em “Sagrada família”, edição Alfaguara. Trata-se de uma verdadeira e comovente crônica de costumes do Brasil do início dos anos 1940, tal como esses costumes se encarnavam numa cidade serrana do Estado do Rio de Janeiro, a fictícia Florida; a apresentação, que diz ser o romance em parte autobiográfico, nos permite inferir que se trata de Friburgo, onde Ventura passou a adolescência, tendo sido, como o narrador do romance, aprendiz de pintor de paredes e faxineiro de laboratório de prótese dentária. Embora contenha passagens nostálgicas – os nevoeiros intensos que escondiam o outro lado da rua em Florida, os sabores disponíveis na mais badalada sorveteria local, os passeios tão evocativos em bicicletas alugadas, os avanços da americanização dos costumes (em especial nas vestes e nos consumos recém-iniciados de chicletes e Coca-Cola, tudo inspirado pelo cinema), o hábito de expor ao frio os alimentos do lado de fora das janelas (não havia geladeiras), as novelas, as cantoras e os cantores e o noticiário das rádios – o livro é bastante crítico e não demonstra nenhuma saudade daqueles tempos. Isso se explica porque o verdadeiro personagem central do livro, seu tema praticamente único, a situação que está por trás de todos os pensamentos e de todas as atitudes de todos e cada um dos personagens, é o sexo. Que naquele tempo era severamente reprimido, com os rapazes tendo de contentar-se com prostitutas e as demais moças, as chamadas moças de família, tendo de permanecer virgens até o casamento e, uma vez casadas, sendo obrigadas a manter relações sexuais só com o marido. No entanto, um era o comportamento visível, com as mães viúvas alardeando manter uma supostamente virtuosa castidade e educando suas filhas nessa mesma castidade, e outra era a vida real, oculta pelas janelas dos quartos das casas e mesmo pelas portas internas dos estabelecimentos comerciais. Nos poucos momentos em que não está descrevendo os comportamentos sexuais altamente hipócritas e mesmo patológicos gerados por essa estranha combinação de castidade pública e permissividade privada, que certamente parecerá estranha e até incompreensível pelos jovens de hoje, Zuenir Ventura, nesse livro, dá algumas pinceladas sobre o Estado Novo, ao descrever cerimônias e reuniões oficiais de que participa o então presidente-ditador, Getúlio Vargas, vistas pelos olhos de um guarda-costas do séquito oficial de Vargas que havia nascido em Florida e que depois dessa vivência na então capital federal, o Rio, volta para a região serrana. De leitura envolvente e que chega a ser encantadora, o livro, que na maior parte do tempo é, como vimos, uma crônica muito bem documentada de costumes e que, como diz a apresentação, retrata largamente a experiência do autor quanto jovem, evolui nos trechos finais para um tom mais trágico, e aqui parece intervir a veia fabular de Zuenir Ventura; no final do livro temos mais fabulação do que rememoração. Se poderia dizer que se trata de um universo existencial situado no mesmo campo do de Nelson Rodrigues, mas com um requinte artístico mais apurado, que dá vazão não só a um realismo cru, mas também às emoções mais profundamente sentidas pelas personagens e pelos personagens. Por essa mesma razão, o andamento do romance de Zuenir Ventura é mais lento, mais solene, mais cerimonioso do que as sucessões rápidas de acontecimentos efêmeros das obras de Nelson Rodrigues. Em suma, uma obra de leitura instigante e compensadora. A maior peninha é insignificante: o nome do subsecretário de Estado americano Sumner Welles aparece como Summer Welles.

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