2 de janeiro de 2014

Autoajuda para intelectuais

O ponto alto da autoajuda Renato Pompeu Os intelectuais costumam torcer o nariz para os livros de autoajuda, mas como reagirão se um grande intelectual publicar um livro de autoajuda baseado na vida e obra de um dos maiores escritores de todos os tempos? O primeiro livro de alta cultura de autoajuda, afinal, já foi lançado quinze anos atrás na Inglaterra, “Como Proust pode mudar sua vida”, do suíço radicado na Grã-Bretanha Alain de Botton, 43 anos (tinha 28 quando publicou o trabalho), agora lançado no Brasil pela Intrínseca. Botton teve, na Suíça e na Inglaterra, uma educação requintada, como o único filho homem (tem uma irmã) de um grande banqueiro que foi sócio das duas mais famosas famílias banqueiras do mundo, os Rothschilds e os Weinbergs. Mestre em Filosofia pela Faculdade do Rei em Londres em 1992, o jovem Alain abandonou no ano seguinte as pesquisas para o doutorado pela Universidade de Londres para começar a publicar livros, primeiro de ficção com um forte conteúdo ensaístico baseado em sua vasta bagagem de erudição filosófica. Foi assim um dos pioneiros do romance-ensaio, típico produto do chamado pós-modernismo, em que os autores costumam demonstrar uma grande riqueza na técnica da escrita e nas alusões à alta cultura, combinada com uma bem menos rica capacidade de fabulação, em geral baseada na própria experiência de vida do autor ou em pesquisas sobre a vida de outras pessoas. “Como Proust pode mudar sua vida” é seu primeiro livro de não-ficção, mas na verdade não demonstra uma grande mudança em seu tipo de trabalho. Essa obra pode ser vista quase como mais um romance-ensaio erudito e muito bem redigido, desta vez com base em pesquisas sobre a vida e obra de Proust, um dos maiores escritores de todos os tempos. O francês Marcel Proust (1871-1922), rebento igualmente de uma família muito bem situada, o qual nunca precisou trabalhar para sobreviver, se deslumbrou desde a infância com a vida requintada das grandes famílias francesas, sobre que escreveu primeiro como cronista social, depois como ensaísta e finalmente como grande escritor criador. Acometido de asma, passou, a partir de 1897, aos 26 anos de idade, a viver recluso, lendo e escrevendo e se empenhando na defesa do célebre capitão do Exército francês Alfred Dreyfus, falsamente acusado de espionagem pró-Alemanha em meio à primeira grande onda de antissemitismo da era contemporânea no Ocidente. A partir da morte de sua mãe, em 1905, quando ele tinha 34 anos, viveu ainda mais recluso, praticamente confinado a uma sala em que foi escrevendo a sua obra-prima, o romance em seis volumes “Em busca do tempo perdido”. O livro de Botton é uma espécie de pastiche divertido de Proust, mas a obra funciona também como bem-humorada autoajuda. Em que Proust pode nos ajudar, se nunca trabalhou nem nunca viveu um grande amor? Botton, o que é um tanto insólito para um livro de autoajuda, parece achar que o máximo a que um ser humano pode aspirar de felicidade plena é aprender a lidar com a sua própria infelicidade. Quanto a Proust, os sentimentos psíquicos de infelicidade da qual procurava escapar produzindo grande arte eram particularmente agravados pelas suas frequentes e intensas crises de asma, que lhe proporcionavam momentos agudos de alto sofrimento físico que acabou se tornando crônico. Botton ensina, por meio das atitudes de Proust, a como cada um pode encontrar termos de boa convivência com o próprio sofrimento. Mais do que isso, Proust, por meio de Botton, ensina como encontrar grande beleza e plenitude na contemplação, ou na fruição sensorial, de uma cozinha, ou, se pode dizer, até de um vaso noturno. Afinal, todas as lembranças que Proust pretendeu resgatar partem, em sua obra, e possivelmente partiram também em sua vida, do gosto, da visão e do cheiro de uma pequena bolacha ou doce, a chamada madalena. Já na maturidade, o autor-personagem, degustando uma madalena, se lembra afetivamente de outras situações, desde a infância, em que fruiu dessa bolacha ou doce. Se dedicarmos a cada momento de nossas vidas tanto empenho emocional quanto Proust dedicou à fruição da madalena, veremos que a nossa vida é muito mais bela, muito mais colorida, muito mais rica e mesmo muito mais feliz do que a imaginamos quando ficamos perdidos, sem reflexão, na vivência das aperturas do cotidiano. Afinal de contas, Botton, em seu pastiche da autoajuda, não promete “melhorar” a vida, e sim “mudar” a vida, como diz o seu título. Pois se deve lembrar que a obra de Proust gerava, numa de suas leitoras mais assíduas, a também grande escritora Virginia Woolf, ímpetos de suicidar-se, o que, em primeiro lugar, é uma mudança radical na vida, e, em segundo lugar, muitos anos depois ela concretizou. Não é à toa que Botton começa seu livro dizendo: “Há poucas coisas a que os seres humanos se dedicam mais do que a infelicidade”. E o encerra com a frase: “Até mesmo os melhores livros merecem ser abandonados”. Viver é melhor do que ler ou escrever, eis a grande lição.

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