7 de outubro de 2011

As sombrias previsões da escritora Margaret Atwood

Recentemente o Diário do Comércio, de São Paulo, me encomendou a seguinte resenha:

A “distopia” de Margaret Atwood



Renato Pompeu



Desde o século 16, no Ocidente, escritores produziram várias utopias, em que descreviam situações ideais, sociedades humanas fictícias, localizadas no futuro ou em regiões remotas, em que não havia miséria nem maldades, nem abusos nem exploração de seres humanos por seres humanos. Foi só a partir do século 20, com sua sucessão de horrores em massa, que surgiram as chamadas “distopias”, ou seja, utopias ao contrário, que descreviam sociedades humanas no futuro ou em lugares remotos, em que prevaleciam a maldade, o controle absoluto das mentes, a miséria e a infelicidade, as torturas.

No começo, a inspiração das distopias eram os regimes totalitários que povoaram o século 20 e os escritores imaginavam sociedades ainda mais totalitárias, como “1984”, do britânico George Orwell, ou “O admirável mundo novo”, do também britânico Aldous Huxley. Em Orwell, o totalitarismo se estendia ao controle das mentes; em Huxley, ao controle biológico dos nascimentos.

Depois, entre novas distopias, no pós-Segunda Guerra Mundial, se destacavam as que se situavam após uma guerra nuclear, com os sobreviventes humanos constituindo uma população rarefeita, às vezes reduzidas a uma pessoa só, ou a poucas outras pessoas.Em seguida vieram as distopias baseadas em catástrofes ecológicas, em desastres ambientais. Mas o romance da escritora canadense Margaret Atwood, “O ano do dilúvio”, que acaba de ser lançado no Brasil pela Rocco , dois anos após o lançamento em inglês, descreve um mundo desolado e hostil a seres humanos que se localiza no futuro após catástrofes genéticas.

Num mundo que leva ao exagero características do mundo atual, a humanidade está dividida em três grupos: os poucos que vivem em condomínios de luxo realizando experiências de bioengenharia, os muitos que vivem na miséria absoluta fora dessas verdadeiras redomas luxuosas, e os ambientalistas que combatem o consumismo desenfreado. Um vírus desconhecido mata quase todos os seres humanos, e animais “experimentais” criados pela engenharia genética tomam conta do mundo, como os mistos de leão e de carneiro e os porcos dotados de cérebros humanos, além de ovelhas de pelos multicoloridos.

A história é narrada sob os pontos de vista de duas mulheres que escaparam da nova praga. Margaret Atwood tem sido chamada de escritora de ficção científica, mas ela prefere descrever o gênero que pratica como “ficção especulativa”. Com efeito, nesse seu novo livro, ela não lida apenas com ciência, mas desenvolve tramas relacionadas com exacerbações de tendências sociais e culturais do atual mundo global, bem como com suas vertentes econômicas, religiosas e políticas.

De fato, embora Margaret Atwood, atualmente com 72 anos de idade, tenha escrito dezenas de livros de vários gêneros, inclusive para crianças, a sua marca desde pelo menos os anos 1980 tem sido realmente a ficção especulativa. Trata-se do seguinte – ela constata um aspecto mais ou menos anômalo da sociedade atual, como o fundamentalismo religioso ou a eventual falta de maior cuidado com as consequências dos avanços tecnológicos. Em seguida, a escritora imagina uma situação no futuro em que essa anomalia se agiganta e toma conta do mundo. Ela já descreveu, por exemplo, os Estados Unidos do futuro como estando dominados pelos fanáticos cristãos de extrema direita, ou, em “Oryx e Crake”, de 2003, o mundo que existiria após uma catástrofe genética. Assim, ela realiza um trabalho semelhante aos que especulam, por exemplo, sobre os futuros impactos das mudanças climáticas.

“O ano do dilúvio” chegou a ser apresentado como uma continuação de “Oryx e Crake”, pois também se passa após uma catástrofe genética, e de fato há personagens em comum entre os dois livros, mas cada um pode ser lido independentemente do outro. Margaret Atwood é particularmente destra em descrever ambientes naturais, seja intocados, seja destruídos pela ação humana. Afinal, ela é filha de um entomologista, e o pai a fazia passar seis meses de cada ano na mata virgem da Província de Ontario, onde ele observava insetos, e os restantes seis meses na cidade grande.

Começou como poeta que criticava os artificialismos da vida moderna. Formada em três universidades, a canadense de Ontario e as americanas de Radcliffe e Harvard, ela publicou, além de seus poemas, mais de dez romances, dois volumes de crítica literária, livros infantis, livros de contos; é ativa colaboradora em jornais e revistas, militante de causas feministas e políticas, sempre com um sentido de manter as liberdades individuais e a independência diante de governos e de grandes conglomerados econômicos.

Em diversos livros, tanto de ficção como de não-ficção, ela manifesta preocupação com tendências antidemocráticas nos poderosos Estados Unidos, tão próximos de seu Canadá. Duas de suas frases famosas são: “Cuidado ao pedir justiça, pois a justiça pode ser imposta a você” e “Uma palavra depois de uma palavra depois de uma palavra é poder”. No novo livro, ela nos chama a atenção sobre o que pode ocorrer se os seres humanos continuarem irresponsáveis ecológica e geneticamente.

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