20 de fevereiro de 2010

O romance de Foz do Iguaçu

O Diário do Comércio me encomendou há tempo a seguinte resenha:

Um romance importante, sobre Foz do Iguaçu

Existem romances que são obras-primas de grande arte, que apelam para um público universal e atemporal – nessa categoria há poucas obras de brasileiros, como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Há romances que são entretenimento em estado puro, e que deliciam quase apenas seu público-alvo e cujo efeito dura apenas o tempo de sua leitura. Finalmente existem romances que são importantes como documentação social e que sempre vale a pena ler, ainda que sejam dirigidos mais para o público específico que quer conhecer a situação histórica retratada no livro. É o caso de Ai, do paranaense Fábio Campana, 60 anos, publicado pela Travessa dos Leitores.
Trata-se da história da cidade paranaense, fronteiriça com a Argentina e o Paraguai, de Foz do Iguaçu, mais ou menos de 1850 a 2000, encarnada na vida das gerações sucessivas de uma família que enriqueceu como parte da tosca aristocracia do mate, assumiu ares de fidalguia, decaiu como decaiu o mate, teve suas terras afogadas pela represa de Itaipu, e agora vive como estamento do Estado, como o irmão historiador de universidade que narra a saga, o irmão político corrupto e corruptor que é o personagem principal do livro, ou do crime organizado, como o terceiro irmão.
O tom geral do romance, como indica a dolorosa interjeição que é o seu título, é em agudamente pessimista e sombrio, não só sobre os destinos dessa família específica ou de Foz do Iguaçu, mas do Paraná em particular e do Brasil em geral, e até do mundo como um todo. Nada é nobre ou elevado, nem o amor materno, nem o amor conjugal, nem os laços fraternais. A mais importante figura materna, a matriarca, está apenas preocupada com as fumaças de requinte das falsas tradições da família. As esposas estão sempre predispostas à traição. E os irmãos concorrem e rivalizam entre si, muito mais do que se confraternizam; o irmão historiador despreza o irmão político por ser corrupto e o irmão político despreza o irmão historiador por ser fraco. O irmão criminoso, é claro, todos desprezam.
Mas o caráter sombrio da história não se limita a essa família específica. O pessimismo do autor Fábio Campana é cósmico e por muitos será visto como dolorosamente lúcido, por outros como exagerado; para estes, haveria coisas belas na vida também, além das feias e desagradáveis. O pessimismo e o caráter sombrio advêm do romance como painel de toda a vida e história dos seres humanos; na visão de Campana, tudo que é humano está destinado a apodrecer sem ter florescido.
Sim, a família decaiu sem que, em nenhum momento do passado, ela tenha chegado ao esplendor. Os irmãos tiveram visão de um melhor futuro apenas enquanto lutavam contra um presente particularmente degradado, o regime militar. A abertura democrática apenas serviu para que chafurdassem, como porcos, no lamaçal da mediocridade acadêmica, ou no lodaçal da corrupção e da criminalidade. Toda a vida provincial e depois estadual do Paraná, e toda a vida imperial e depois republicana do Brasil estão marcadas por uma decadência agravada pelo fato de ser medida a partir de um ponto alto que nunca foi grande coisa.
Parafraseando o teórico político italiano Antonio Gramsci, os personagens de Campana têm apenas o pessimismo da inteligência: não dispõem do otimismo da vontade também recomendado por esse pensador. Tudo naufraga antes de começar a navegar; o único empreendimento que pode ter alguma dignidade é relatar essas tristezas. Pois é no relatar, mais do que nas coisas relatadas, que reside o entusiasmo do autor. Eu sofro, nós sofremos, Foz do Iguaçu sofre, o Paraná sofre, o Brasil sofre, o mundo sofre, mas pelo menos eu estou consciente disso e posso falar sobre isso – é o que parece dizer Campana com seu “ai”.
Mas ainda assim vislumbramos alguma esperança em sua obra. Houve um momento, no mundo, no começo do século 20; houve um momento, no Brasil, durante a luta contra o regime militar, em que parecia existirem razões para se crer num futuro melhor. Campana não chega a dizer que vislumbres semelhantes podem voltar a ocorrer – mas é o que o leitor pode extrair de seu livro, além da extraordinária capacidade de retratar personagens de carne e osso e situações que vivenciamos na pele.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.

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