16 de março de 2010

Artigo sobre bipolar, parte 1

Segue a primeira parte do artigo sobre distúrbio bipolar encomendado pelo Diário de S. Paulo:

A estranha história do artista plástico brasileiro que sumiu em Londres na véspera da inauguração de sua exposição ou: Memórias de um bipolar, por Vado Mesquita

A 14 de maio de 2008, a BBC informou ao mundo que o artista plástico brasileiro Vado Mesquita havia desaparecido sete dias antes, justamente na véspera da inauguração de uma exposição de suas obras numa instituição britânica. A Scotland Yard apurou que seu cartão de crédito continuava sendo usado em vários estabelecimentos, mas não conseguia localizá-lo. Chegou-se a suspeitar que outra pessoa estava usando o cartão, mas as gravações das câmeras de vigilância mostravam que era Vado mesmo. Ele tinha histórico de surtos psicóticos e só reapareceu dez meses depois, contando que tinha passado a maior parte do tempo, deprimido, num pardieiro, e vagando pelas ruas de Londres. Agora, após 18 anos no Reino Unido, Vado Mesquita voltou a São Paulo e, recuperado, prestou um depoimento sobre como se sente sendo portador de distúrbio bipolar depressivo. Eis o seu depoimento, editado pelo jornalista Renato Pompeu:
Nasci Oswaldo Affonso de Mesquita Sampaio Filho, filho de um casal do Itaim Bibi, bairro de classe média alta na Zona Oeste de São Paulo, um ortodontista e uma bibliotecária. Vado colou rapidinho. Vado Mesquita é como assino meu trabalho.
Cresci perto de uma Marginal do Pinheiros ainda chamada Rua Hungria e de terra batida e cheia de mato alto a ladeá-la, na Rua Campo Verde, casa modesta mas confortável que meu pai construiu antes do Shopping Iguatemi e da avenida Faria Lima existirem.
Eu dividia minhas tardes entre a sala de artes da biblioteca em que minha mãe trabalhava e o consultório do meu pai, perto do clube Pinheiros, onde também cresci, nadando, jogando tênis, namorando.
No consultório eu fazia os moldes em gesso, assim comecei a me formar como artista plástico. O consultório já declinava, pela condição que meu pai sofria e nem sabia, psicótico maníaco depressivo (nomenclatura vigente então).
Estudei no Externato Elvira Brandão e na FAU-USP. Naquele começo dos anos 80, experimentamos a volta dos exilados, traziam artistas, políticos, músicos, pra dar palestra. Eu fazia uma performance relativa a cada assunto, do tipo enfiar a cabeça numa tevê de papelão, quando o assunto era TV. Quando eu percebi que não seria arquiteto, um ótimo emprego de assistente de maternal me deu a âncora financeira. Logo fui trabalhar com crianças no CCSP na Vergueiro, 1/3 público em geral, 1/3 de crianças dos cortiços das vizinhanças e 1/3 de jovens da FEBEM. Foi muito especial.
Me lembro bem do meu primeiro surto depressivo, com um certo trauma da primeira internação do meu pai, este em surto maníaco e totalmente ensandecido e eu tendo que distraí-lo até que os enfermeiros brutamontes chegassem para sedá-lo e levá-lo à força para uma ambulância e um sanatório. Eles chegaram e eu tive que sair correndo, incapaz de presenciar a cena. Fui levado, por minha irmã e pais, a um psiquiatra e, depois de fingir que tomava a medicação todos os dias, enfiei tudo goela abaixo de uma só vez. Acabei numa clínica no Guarapiranga. Fiquei um tempo e levei umas doloridíssimas pedras nos rins de lá. Devo ter tomado um monte de lítio, que carrega pedras nos rins como um dos efeitos colaterais.
Agora acho inacreditável que eu não tenha tido nem uma sessão sequer de terapia ou conversa com o medico que me tratava. Melhorei com a medicação e voltei a trabalhar com crianças. Fiz muita cenografia e direção de arte para cinema, televisão e publicidade.
Meu pai era uma pessoa fantástica quando equilibrado, profissional competente, inovador e considerado.. De vez em quando, no entanto, ele se transformava num monstro irreconhecível. Só fomos saber que ele sofria de psicose maniacodepressiva, como era então conhecido o distúrbio bipolar, quando minha irmã mais velha, Marília, estudava psicologia e reconheceu os sintomas num livro que estudava. Ele perdeu quase tudo que havia acumulado e que saía a desperdiçar ensandecidamente quando maníaco.
Muitos dos 11 irmãos e irmãs dele tinham sérios problemas mentais, uma tia morando no sanatório Bela Vista, outra no convento da tia Maria, diretora do curso de Assistência Social da PUC de Campinas e madre superiora. Um tio fazendeiro cometeu suicídio em Ribeirão Preto. Tudo, no entanto, era disfarçado, escondido ou ignorado. Sou pela igualdade plena para qualquer assunto. Assuntos proibidos fermentam dentro e têm consequências nocivas a todos os envolvidos.
Escolhi ser artista ao invés de educador no momento em que a escolha se fez imperativa e tive um segundo surto depressivo que me levou a fugir e correr pelo Brasil. Hoje, quase meio século depois, percebo que minha resistência em admitir ser bipolar nada mais era do que um profundo pavor em me tornar algo parecido com aquele monstro no qual meu pai se transformava. Ao invés de me tratar, eu me escondia. Sumi uns 6 meses, entre o nordeste de Trancoso e Itaúnas.
Não sei se é a sensação palpável de bem-estar quando a medicação funciona, misturada à estigmatização que ainda existe, mas a maioria dos bipolares não consegue se tratar ou medicar sistemática e eficientemente.
Tendo voltado disposto a me tratar, vi um psiquiatra indicado pela irmã do meu melhor amigo de FAU, Felipe. Nunca havia me sentido tão respeitado como paciente nos vários consultórios que havia visitado. Não apenas um antidepressivo, mas uma combinação pensada para o meu caso especificamente. Três décadas e muitos surtos depressivos depois, foi o nome dele que me veio à mente quando comecei a organizar meu tratamento lá de Londres, antes voltar pra São Paulo. É com ele que estou me tratando e me sentindo muito bem agora.
Quando voltei a Sampa lá das Geraes, acabei por trabalhar como cenógrafo, diretor de arte. Depois de algum tempo, entrei em outra depressão profunda. O trabalho em publicidade era oco, superficial demais para mim. Minha mãe propôs que eu viajasse, fosse morar em algum outro canto do planeta. Londres foi a opção, por questões de acesso a culturas diversas.
Lá se vão 18 anos, um casamento fracassado e muita água debaixo da ponte. A ida para Londres teve um elemento de fugir de mim mesmo, da minha própria depressão, mas também nada mais efetivo em encontrar a própria essência do que se distanciar da própria terra, da sociologia e geografia natais.
Os sintomas das depressões que sofro já me são bastante familiares. Sempre começa com um desconforto interno comigo mesmo e com as pessoas em geral. Quanto mais próxima e/ou amada a pessoa, mais desconfortável eu me sinto na sua presença. Por decorrência, quanto mais neutra e desconhecida a pessoa, mais confortável eu me sinto. Por isso que, ao atingir o limite de pretensão de estar bem, eu tenho que sumir dos círculos que frequento. Desenvolvi a noção de suicídio conceitual. É o que faço quando profundamente deprimido: eu me suicido para o meu mundo e amigos. Sempre, depois de voltar de uma depressão, me sinto aliviado por ser covarde demais para me matar de verdade.
Em Londres, decidi comprar minha total e irrestrita liberdade de expressão com um emprego qualquer onde não precisasse gastar nada da minha energia vital, criativa. Os empregos foram muitos. Perto de casa, que desse para ir a pé e bem pagos de preferência. Faxina, bar, hotel, oficinas de arte.
Caí no BAC, Battersea Arts Centre, pertinho de casa, e com meninas lindas e simpáticas a servir café e bolos apetitosos. Ia lá para ler, escrever e trabalhar nas minhas imagens pequeninas de desenhos a vapor que os aviões deixam nos céus de lá e paisagens e personagens que encontro nos caminhos que percorro.
Acabei por ser convidado para participar de um festival de arte latinoamericana no BAC. Como decidi usar as janelas imundas, pedi uma escada para limpá-las. O gerente do café ficou tão impressionado com a minha disposição, que me ofereceu um emprego.
Minha mulher de 4 anos, Ashley, morava do lado do BAC. Nasceu no Zimbábue. Quando a encontrei, estudava jornalismo. Pensei ter fisgado uma africana, mas, no final das contas, ela era mais inglesa do que as próprias, incapaz de falar ou lidar com emoções, sempre deixando tudo dentro até que tudo transbordasse de forma desordenada.
Eu tive algumas depressões durante esse período, mas nunca muito severas e sempre controladas de alguma forma pela medicação. Ashley, por inexperiência ou ignorância, via minhas depressões como preguiça. Ela acabou por me tratar, a partir do momento que saiu de casa, como inimigo mortal.
Quando me separei da Ashley, me vi só em casa, traumatizado, sem emprego. Em profunda depressão, fiquei quase 3 anos trancado em casa a me esconder de mim mesmo, dos meus amados e amadas e do mundo. Tudo terminou com uma visita da Ashley acompanhada da polícia (just in case), forçada por minha mãe. Quando a depressão toma conta, deixo a família e amigos sem notícia, palavra alguma. O que percebi, ao constatar quão rápida foi a minha recuperação, foi que já não estava mais deprimido, mas sim aprisionado por um perverso conforto que havia fabricado e encontrado dentro da própria depressão.

Um comentário:

Vitima do Tratamento disse...

O Marketing da Loucura:
http://www.youtube.com/watch?v=6X3Khv2ura4

Psiquiatria: Uma Indústria da Morte:
http://www.youtube.com/watch?v=c1NF7x-yfuc

PSIQUIATRIA - Lucros de Matar
http://www.youtube.com/watch?v=7-I6uCb1g1I