6 de setembro de 2010

Um clássico pós-moderno

Recentemente a revista Carta Capital me encomendou a seguinte resenha:

O “2666” de Bolaños, clássico pós-moderno

Uma Europa cansada, uma América Latina bárbara, um epitáfio da segunda metade do século 20 no Ocidente – é isso o que retrata o primeiro clássico da ficção pós-moderna. Sete anos após a morte de seu autor, o bem conhecido escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), seis anos após sua publicação póstuma em castelhano, de 1.100 páginas, e dois anos após o seu lançamento em inglês, de cerca de 900 páginas, e um ano após a edição portuguesa da Quetzal, sai finalmente no Brasil, pela Companhia das Letras, em mais de 850 paginas, o monumental romance “2666”, aclamado como o primeiro clássico mundial do século 21 pelo Círculo Nacional dos Críticos de Livros dos Estados Unidos, que lhe consagrou seu Prêmio de Ficção em 2008. Bolaño nasceu filho de um motorista de caminhão e pugilista e de uma professora do fundamental. Sua família mudou para o México por ocasião do golpe que derrubou e matou o presidente Salvador Allende, em 1973. Bolaño se estabeleceu na Espanha, após a redemocratização desse país, e lá se tornou um poeta cujas obras não tiveram maior repercussão. Por volta dos 40 anos, porém, nos anos 1990, começou a publicar importantes romances que o tornaram famoso no mundo de fala hispânica e internacionalmente, como “Os detetives selvagens” e “Noturno do Chile”, já traduzidos em português. Ao morrer, o escritor deixou diversos textos inéditos e o primeiro a ter sido publicado pelos seus herdeiros foi “2666”, programado inicialmente pelo autor para ser editado como uma série em cinco volumes. Sua família, no entanto, resolveu incluir num livro só toda a série, embora uma das cinco partes ainda tivesse sido deixada incompleta pelo escritor. Em nenhum momento do livro aparece o número do título, mas se especula que é uma referência ao Livro do Êxodo do Antigo Testamento, já que, segundo a tradição judaica, o Êxodo dos judeus que saíram do Egito teria ocorrido no ano 2666 de seu calendário, que, ainda de acordo com a tradição judaica, se iniciou no momento da Criação. As cinco partes, que se passam em diferentes países do mundo – um reflexo da globalização – se organizam em torno de três eixos principais: o vazio da vivência cultural e existencial da intelectualidade universitária européia pós-moderna, que se limita a catalogar e inventariar as poucas obras realmente criativas que surgiram na segunda metade do século 20, retrato de uma Europa cansada, descrente e cínica, apesar de seu auge de conforto material; as centenas de assassínios misteriosos de mulheres na fictícia cidade mexicana de Santa Teresa, inspirada na cidade real de Ciudad Juárez, perto da fronteira com os Estados Unidos, onde ocorreram esses crimes, retrato de uma América Latina que ainda mal saiu da barbárie, e as peripécias igualmente selvagens da Frente Oriental da Segunda Guerra Mundial, ou seja, a guerra entre a Alemanha Nazista e a União Soviética. O livro tem mais valor como riquíssima documentação social do que efetivamente como obra de arte, já que é basicamente um inventário, com muita informação e pouca emoção. Como a cultura pós-moderna já foi chamada de “cultura de inventário”, o livro já é o grande clássico da pós-modernidade, pois a cultura de nossos tempos está nele imortalizada. – RENATO POMPEU

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